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16.11.2016
Conviver & Preservar
Diario de Nordeste - Maristela Crispim


Cinco anos seguidos de chuvas abaixo da média não foram suficientes para arrefecer o ânimo de pequenos agricultores familiares que têm desenvolvido formas de produção que valorizam os recursos naturais e permitem a convivência com as adversidades do Semiárido brasileiro

Os dados de setembro do Monitor de Secas, ferramenta coordenada pela Agência Nacional das Águas (ANA), com participação de diversas instituições estaduais, como a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), revelam que 97,76% do território do Semiárido brasileiro vive uma seca grave, sendo este ano de 2016 o quinto ano consecutivo de chuvas abaixo da média.

Diante deste quadro, só no Estado do Ceará, os açudes monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) acumulam apenas 7,7% da capacidade, o que tem levado os governos federal e estadual a investir em carros-pipas, adutoras de montagem rápida e no megaprojeto de transposição das águas do Rio São Francisco para garantir o abastecimento humano, caso as chuvas não venham no ano por vir.

Mas, diferentemente de períodos de estiagem anteriores, algo mudou no sertão. Fatores como as bolsas que tiraram milhões da miséria são relevantes neste quadro. Mas saltam aos olhos as iniciativas de convivência que tiveram berço no próprio sertão, a partir do simples gesto de aparar e armazenar a água da chuva para usar depois.
As Tecnologias Sociais começaram a despertar a atenção pelo Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), que se transformou em política pública e já ultrapassou a meta inicial do ano 2000, garantindo o acesso à água para beber e cozinhar a mais de um milhão de famílias do Semiárido.

Depois vieram outras iniciativas, voltadas à segurança alimentar e à geração de renda, que fizeram toda a diferença sertão adentro, a ponto de, diante de uma Caatinga de perde as folhas pra não morrer na estiagem, canteiros verdes brotarem como um milagre que mantém o agricultor no seu lugar a despeito das dificuldades.
É disso que tratada este DOC, publicado em duas partes, sendo esta primeira focada no recurso mais fundamental para a existência de vida: a água.

TECNOLOGIAS SOCIAIS
Experiência transformada em política pública
Do costume de aparar e reservar a água da chuva às tecnologias que permitem conviver com anos de seca

Fortaleza. O Semiárido brasileiro, que inclui boa parte da Região Nordeste, enfrenta uma das secas mais severas em décadas, totalizando cinco anos de chuvas abaixo da média. O Monitor das Secas aparece com a maior parte do território na condição de seca extrema, com um núcleo de seca excepcional.

Neste contexto, se, como escreveu Euclides da Cunha, é preciso ser forte para resistir, uma das fórmulas de maior destaque tem se baseado nas experimentações dos sertanejos. Um elemento, em especial, mudou a paisagem do Semiárido nos últimos 15 anos. É muito difícil percorrer a zona rural sem visualizar as famosas cisternas de placas.

Cristina Nascimento, coordenadora do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador (Cetra) e da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), conta que a cisterna surgiu exatamente a partir da experiência de um agricultor e, daí em diante, muita coisa surgiu para melhorar a vida do sertanejo no Semiárido. O ponto de partida se deu com o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC).

"A ideia central é exatamente olhar as experimentações, as vivências dos agricultores e transformá-las em tecnologias que tenham escala, que possam ser multiplicadas. Quando a ASA surgiu, há 16 anos, foi na perspectiva de contrapor a ideia de que o Nordeste, o Semiárido só tinha viabilidade nos grandes açudes, nas grandes infraestruturas porque essa era a lógica de que a solução seria guardar água em grande quantidade e de forma concentrada. Com a ideia de pensar ações que pudessem garantir o mesmo princípio, de que a água é importante e precisa ser estocada, mas de forma descentralizada, a ASA propôs, desde o princípio, essas ações com tecnologias sociais e foi buscar isso na cisterna", explica Cristina.

Costume antigo
"Quem é do Interior sabe que quando chove as famílias colocam as vasilhas na biqueira da casa para guardar a água, nem que seja para tomar no dia seguinte. A cisterna parte desse princípio, de guardar aquela água que cai da biqueira da casa de cada família. Daí foi pensada essa estratégia de fazer um reservatório ao lado da casa, que tenha uma certa profundidade para que a água mantenha-se numa temperatura bacana, para que não evapore", afirma.

É a cisterna, primeira tecnologia nas ações da ASA, que começa a dar expressão a esse termo de Tecnologia Social, parte desse princípio de garantir uma escala maior à experiência do agricultor e também tem uma outra perspectiva importante de as famílias se apropriarem do método, da construção, do cuidado, do manejo e que seja economicamente viável.

Continuando a trajetória da primeira água, necessária para as populações ficarem no campo, veio a segunda água, que é para produção de alimentos, a começar pelas cisternas de 52 mil litros, a calçadão e a enxurrada; há também o barreiro-trincheira, de 500 mil litros; a barragem subterrânea; e o tanque de pedra. "Nós construímos a ideia de possibilitar a essas famílias várias tecnologias para armazenar água de chuva para que possam produzir alimentos e ser mais uma forma de fortalecer o seu vínculo com o lugar. Se o agricultor familiar tem água para beber, tem como produzir o seu alimento e com excedente gera renda, por que tem que deixar o seu lugar?", questiona.

Segurança alimentar
Cristina destaca, ainda, o aspecto da segurança alimentar, já que o Semiárido sempre foi visto como o lugar da fome e da miséria. Neste caso, ela ressalta que ir pela linha do alimento saudável, produção agroecológica é também uma porta de fortalecer um outro modelo de desenvolvimento para o Semiárido.
O Programa Uma Terra, Duas Águas (P1+2) carrega essa ideia da construção da segurança alimentar das famílias, acesso ao alimento saudável, de qualidade, produzido por eles mesmos. "Quando você vê as famílias comercializando nas feiras agroecológicas, na própria comunidade é bacana, mas o que mais encanta é chegar à casa do agricultor familiar e ver na mesa do almoço, do jantar a variedade de alimentos produzido por eles mesmos", orgulha-se.

Mobilização
Cristina destaca que a ASA propôs a ação inicialmente, em parceria com diversos organismos nacionais, internacionais e o governo federal, já construiu aproximadamente 600 mil tecnologias de primeira água. "São 600 mil famílias mobilizadas, que, após processo de formação, passam a olhar o Semiárido, a água de forma diferente", frisa. Se olhar para o governo federal, que além da ASA tem outros parceiros, como estados, consórcios de organização ou de municípios, já são mais de um milhão de cisternas construídas no Semiárido brasileiro. O que era meta há 16 anos, hoje é realidade.

Cristina enfatiza que todas seguem a mesma metodologia da sociedade civil, "um ganho político muito importante porque não queríamos uma ação de cisterneiros ou de construtores porque, se assim fosse, se qualquer empresa construísse, não teria o princípio da mobilização, da formação e da organização política dos agricultores".
A cisterna de segunda água, tecnologia que, por alguns, é encarada como de alto custo, em torno de 13 mil reais, para Cristina, é um benefício difícil de medir. Nas ações da ASA, elas já chegaram a 70 mil. Se somar as outras, como a barraginha e a barragem subterrânea, chega a 90 mil tecnologias instaladas. Com o governo federal, soma quase 160 mil.

"Elas caminham num passo mais lento porque não é só a cisterna, mas o caráter produtivo, os canteiros, as sementes, todo um sistema montado naquele quintal, o que nos encanta porque, em cinco anos de seca, encontramos essas famílias produzindo alimentos, nas feiras agroecológicas, com a sua dinâmica de produção, de gestão do seu quintal produtivo. É um contraste ao momento que se vive, mas é também a expressão de que esse é um caminho que possibilita a vida pulsar no Semiárido, uma porta de saída da miséria", declara Cristina.

Preservação
"Sem a presença das tecnologias sustentáveis, a situação das comunidades afetadas pela pior seca dos últimos 80 anos, que já dura cinco anos, seria ainda mais crítica. A implantação de tecnologias para a gestão mais eficiente da água é fundamental para reduzir a insegurança hídrica dos sertanejos, pois melhora a proteção, captação, o uso e reúso do recurso hídrico. A proteção e restauração florestal de nascentes, a instalação de cisternas de placas e do sistema bioágua de reúso de água servida e o consumo mais consciente contribuem para que este escasso recurso esteja mais disponível", afirma o biólogo Rodrigo Castro, que é secretário executivo da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) Associação Caatinga. (MC)

AÇUDE INTELIGENTE
Quando menos é mais
Reservatórios profundos, com espelho pequeno, em áreas com boa topografia facilitam o acúmulo

Canindé / Fortaleza. Criado como Inspetoria de Obras Contra as Secas (Iocs), em 1909, o primeiro órgão a estudar as adversidades do Semiárido, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) assumiu essa denominação em 1945 e, já faz tempo, é alvo de críticas, não apenas pelo nome combate (e não convivência), mas pela estratégia de investir em grandes açudes para garantir a segurança hídrica do Semiárido brasileiro.

No caso do Estado do Ceará, no quinto ano consecutivo de chuvas abaixo da média, os 153 açudes monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) acumulam apenas 7,8% da capacidade, sendo que 132 apresentam volume inferior a 30%. Destes, 42 estão no volume morto e 38 secos.

Contraste
Neste contexto de açudes secos e quase secos, onde o maior deles, o Castanhão, está com 5,62%, é surpreendente encontrar um açude que sangrou desde que foi construído, há sete anos, e nunca secou. Situado na localidade de Barra do Bento, em Canindé, no Sertão Central do Ceará, ele é denominado açude inteligente e, mesmo sem entender muito de tecnologia, Raimundo Rodrigues de Souza, 47, nascido e criado por ali mesmo, só tem a agradecer por ele.

Ele conta que a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará (Ematerce) construiu o reservatório em 2009, na comunidade onde vivem 36 famílias. "Foi uma glória em vista do sofrimento que a gente passava aqui. Agora, para tudo que quiser plantar, tem água. Na época que não tinha, era uma briga. A gente ia pegar nos olhos-d'água. Quando dava para todo mundo, tudo bem, mas, às vezes, não dava. Aí ia pegar na Serrinha, na Oiticica, no outro lado desse serrote aqui. A base era cinco, seis, oito quilômetros pra ir buscar água. Agora é só abrir a torneira que tem em casa", conta.

Raimundo só não está com uma produção expressiva no momento porque o motor quebrou, as peças eram muito caras e só depois de mais de um mês apareceu um político que ajudou a consertar. Ainda assim, conta que está produzindo banana e cheiro-verde, que vende na comunidade mesmo.
Os reservatórios monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh), no município de Canindé, Escuridão, Salão, São Domingos, São Mateus e Sousa, estão todos completamente secos. A sede do Município vem sendo abastecida graças a uma Adutora de Montagem Rápida (AMR), que leva água do Açude General Sampaio, no município homônimo.

Sabedoria
José Maria Pimenta, hoje diretor da Central de Abastecimento S/A (Ceasa), era o presidente da Ematerce na época da construção do açude de Barra do Bento. Ele conta que o "grande bebedor d'água do Ceará" é o sol. "Se você constrói um açude com dois metros de profundidade, o sol bebe a água todinha em um ano. Se você constrói com quatro, ele bebe 50%.Se você constrói um açude com 40 metros bebe só bebe 5%. Essa é a ideia. E isso o homem do sertão já sabia há muito tempo. Por que ele armazena água no pote? Porque é um reservatório de boca pequena e ele sabe que a água do fundo vai ficar mais fria que a água de cima. O homem do sertão sabe disso há muitos anos", afirma.

Explica, ainda, que o segredo está na profundidade do reservatório, que o açude, pra ser inteligente, não precisa necessariamente ser pequeno: "Você nunca ouviu falar que Uruburetama teve falta d'água. Por quê? Porque o açude lá é muito inteligente, com 40 metros de profundidade e nunca vai faltar água porque foi construído no local certo, que armazena água e que o sol só bebe 5%. Se você armazena água num espelho grande, o sol bebe tudo".

Pimenta conta que já foi a Israel três vezes e que lá, além de os açudes serem fundos, são cobertos por lonas. "Nós temos que construir açudes nas fraldas, temos que costurar as fraldas das serras, açudes feitos com pouco dinheiro, profundos e que seguram água o ano inteiro. Esse é o segredo". Informa, também, que foram construídos 40 nos oito anos em que esteve à frente da Embrapa. "Eu pelejei para levar o governador lá e ele não foi. Ele deu dinheiro, mas, se tivesse ido ver - como Confúcio dizia; 'uma visita vale por mil relatórios' - teria feito muito mais".

O diretor da Ceasa explica que, se chove 300 milímetros numa área de 200 hectares, cai 600 mil metros cúbicos e há condição de armazenar 500 mil metros cúbicos se for num lugar de boqueirão, um local íngreme, que junta água. "Tem que saber escolher o local. Esse é outro segredo porque chover no Ceará, chove. O que nós não sabemos é guardar água. Em 120 anos da série histórica, no lugar que chove menos, que é o Sertão Central, nós só tivemos quatro anos que ficou abaixo de 300 milímetros. O açude que vocês visitaram, por exemplo, a probabilidade de encher todo ano é 100%. Nestes cinco anos de seca, não teve um ano que ele não vertesse, não sangrasse. Além disso, não secou", constata. (MC)


PROJETO DA UFERSA
Academia aposta no reúso total de água e dejetos
O projeto é inédito, se levarmos em conta a participação de todos os moradores do assentamento


Apodi (RN). Um projeto desenvolvido pela Universidade Federal do Semiárido (Ufersa), iniciado em 2008, vai mais além em termos de reaproveitamento de água. Na verdade, todo o esgoto do Assentamento Milagres, na Chapada do Apodi, no Estado do Rio Grande do Norte, é transformado em água que retorna para garantir a horta comunitária e a manutenção dos quintais produtivos.

O coordenador institucional da Terra Viva, uma das ONGs que formam a Articulação do Semiárido (ASA), Marcírio Lemos, garante que a experiência, em se tratando de uma comunidade inteira reaproveitando todo tipo de água servida, inclusive de esgoto, é inédita no País. "Pesquisamos recentemente e o que está sendo feito aqui não tem precedentes", assegura.

Marcírio Lemos conta que uma criteriosa avaliação mostrou que a região do Apodi, na cidade de mesmo nome, distante 357 quilômetros da capital, Natal, seria a mais indicada para receber essa experiência: "Já temos iniciativas interessantes aqui, com a caprinocultura, apicultura, polpa de fruta e com grupo de mulheres. Entendemos, então, que, por isso, seria o local ideal, já que tem a tradição de remar contra a maré".

Escavações
O engajamento da comunidade foi outro fator preponderante para a aplicação da experiência. Durante nove meses, as 30 famílias, em regime de mutirão, trabalharam nas escavações para construir a tubulação que levaria os dejetos das moradias para a estação de tratamento de esgoto a ser edificada.
O professor da Ufersa Miguel Ferreira Neto, especialista em irrigação e drenagem, lembra que, por conta do reaproveitamento dos detritos, os sumidouros construídos durante a edificação das casas nunca precisaram ser utilizados.

Miguel ressalta que a água de reúso é utilizada para o cultivo de flores tropicais e frutas, como o mamão, o melão, além do sorgo para produção de etanol e na forragicultura, por meio do capim e da palma. "Só não usamos naquelas consumidas in natura, como alface e cheiro-verde. O que temos aqui é uma espécie de usina de produção de água, que, após ser tratada, retorna para o processo produtivo", informa.

O especialista afirma que, em média, dos 40 mil litros de água que a comunidade utiliza diariamente, pelo menos 30 mil retornam para a agricultura. "Antes tínhamos por aqui produção apenas nos quatro meses da quadra chuvosa. Por conta do reaproveitamento, os agricultores podem produzir durante todo o ano, sem qualquer preocupação. A água é suficiente para a manutenção da horta comunitária como também dos quintais produtivos e pequenas atividades.

Irrigação
"Não podemos esquecer que 70% da água potável do mundo é utilizada na irrigação. O restante vai para a indústria e consumo humano e animal. Já imaginou se todas as comunidades do Semiárido, como do restante do País, tivessem acesso a esse processo?", questiona Miguel.

Outro dado ressaltado por Miguel Ferreira Neto é que, para cada real aplicado em saneamento, se economiza pelo menos R$ 4 em saúde: "Essa equação é suficiente para sustentar a ideia do reúso. Sem falar na preservação do meio ambiente". Ele destaca que o engajamento da comunidade foi fundamental para o experimento dar certo. "Essa participação foi essencial. Hoje, a experiência está pronta para ser replicada em qualquer local da região semiárida".

Marcírio faz questão de ressaltar que todos os cuidados são tomados no contato com a água residuária. "Por precaução, evitamos o contato humano. Esse manejo é realizado com toda a cautela. Um ponto favorável ao nosso experimento é que a estação está localizada em plena região semiárida. A própria condição climática trata de eliminar os micro-organismos. O que se produz aqui pode ser consumido por qualquer ser humano, sem a mínima preocupação. A eficiência do sistema de tratamento é testada constantemente por nós", garante.

A água residuária, aliás, apresenta vantagens, segundo Marcírio. "Há plantas, como o capim e a palma forrageira, que demandam nitrogênio, existente em grande escala na urina e nas fezes, esta última contém ainda carbono. Já os produtos de limpeza, como os detergentes, são ricos em fósforo".
Uma das culturas que têm pontificado na horta comunitária de Milagres é a da palma forrageira. O experimento utiliza um sistema de irrigação de baixo custo, em torno de R$ 2 mil.

Desinformação
No início do projeto, a desinformação causou certo transtorno à comunidade e aos seus idealizadores. Quem conta essa história é um dos assentados, o agricultor e comerciante Raimundo Maurício de Oliveira, seu Zito, 62. "Sou conhecido na cidade como Zito Verdureiro. Dei a um amigo locutor aqui na cidade algumas frutas e verduras. Ele foi dizer na rádio local que os alimentos estavam sendo produzidos com água suja, de m.... A história se espalhou. Nesse dia, voltei para casa sem vender nada".

Conforme seu Zito, a história foi parar na Câmara Municipal de Apodi. "O debate foi grande. Foi preciso o pessoal da Ufersa explicar como o processo era feito para que eles entendessem. No fim, tudo ficou esclarecido e tanto esse amigo locutor quanto muitos vereadores ficaram foi envergonhados com a besteira que disseram".
Além dos benefícios conseguidos com o reúso da água, o comerciante enfatiza que um problema que afetava os moradores desapareceu. "Tinha muita lama espalhada pelo chão, contaminando o ambiente e atraindo mosquitos e muriçocas que, por sua vez, traziam para cá várias doenças. Tudo isso desapareceu, para nossa felicidade. Engraçado é que, embora a gente valorize a água, sabemos hoje que, quanto mais banho se tomar, mais água teremos para usar na lavoura". (FM)

CONCEITO BASE ZERO
O ser humano e a natureza na mesma sintonia
Zé Artur desenvolveu um sistema natural de convivência com o Semiárido, preservando ao máximo a Caatinga

Afogados da Ingazeira (PE). Os 650 hectares da Fazenda Caroá, nesta cidade de Pernambuco, pertencente ao engenheiro mecânico José Artur Padilha, tem pelo menos duas iniciativas peculiares que, se replicadas, ajudariam a mudar de vez a situação do Semiárido: o Conceito Base Zero, que consegue acumular água no subsolo por meio das barragens em arco romano deitado, e o aproveitamento das folhas da própria Caatinga para alimentar o gado.

A maior parte da Fazenda Caroá, 450 hectares, se situa dentro da mesma microbacia hidrográfica, chamada Carapuças. Quem chega ao local logo nota que ali a coisa funciona de forma diferente. Convivência é a palavra que resume tudo. O engenheiro desenvolveu um sistema natural, preservando ao máximo o seu bioma, a Caatinga. O segredo é levar água a todos os recantos da sua propriedade por um sistema de irrigação que utiliza a gravidade.

São 22Km de encanamentos e 110 bebedouros espalhados pela propriedade. Com isso, o gado (50 cabeças) tem acesso à água - que vem de duas cacimbas localizadas no topo da fazenda, a 155 metros de altura - sem precisar se deslocar muito. Existem na propriedade também 15 apiários com 34 colmeias.

Sobre as barragens, o encarregado da fazenda, Ivanildo Ângelo de Siqueira, explica que, antes de elas existirem, as águas das chuvas que caíam e corriam pelo leito do riacho Carapuças iam embora em duas horas até chegarem ao Riacho Pajeú. "Os barramentos seguram o solo que era levado nas enxurradas e armazena a água embaixo, em condições para o plantio. Além disso, o que é mais importante: livre da erosão e da salinização. De forma simples, podemos dizer que as pedras freiam a água e encharcam o solo", explica.
Após cinco anos de estiagem, desde 2009, a água não corre mais no riacho. No entanto, existe no subsolo. O pouco que chove é armazenado. Por isso, ao longo da bacia, o verde pode ser visto. Segundo José Artur Padilha, em média, uma barragem tem um custo de aproximadamente R$ 900, o suficiente para construir uma dúzia de barramentos tradicionais.

Na Fazenda Caroá, queimar o solo a fim de prepará-lo para o plantio é uma prática já abolida há muito tempo. Certo dia, a condição física do gado chamou a atenção do proprietário, José Artur Padilha, que tencionava vendê-lo por causa da falta de ração. Entretanto, o fato de os bichos se encontrarem bem nutridos causou espécie. Zé Artur pediu a Ivanildo que acompanhasse os animais durante 24 horas. A surpresa foi tamanha que daí em diante ele desistiu de se desfazer dos bichos.

"O que descobrimos é que, primeiramente, eles bebem água várias vezes ao dia. O outro aspecto é que não precisam de nenhuma ração especial. Para saciar a fome e nutri-los, basta as folhas secas que caem das plantas da Caatinga. É isso mesmo. Eles comem as folhas do angelim, marmeleiro, baraúna, juazeiro, além das vagens da sucupira, do pau-ferro, piaçaba e mororó. Graças às barragens, essa vegetação prospera normalmente na Caatinga. As plantas são preservadas e se renovam", explica Ivanildo.
O passo seguinte foi dividir a fazenda em 49 cercados. Cada cercado desses recebe o gado pelo menos três vezes ao ano. O rodízio oferece alimentação ilimitada aos animais. "É bom dizer que esse processo ocorre naturalmente e, o que é mais importante, tanto faz chover como não. Quando lembro que, a exemplo do que faz a maioria dos donos de terra e criadores de animais, também queimava toda essa vegetação para 'limpar o terreno', vejo o erro que cometi", admite Ivanildo.

Depósitos de sal espalhados pela propriedade complementam a nutrição. "O sal tem 11 minerais. É importante para a alimentação dos bichos. Eles lambem em média apenas 100 gramas. Nos períodos secos é que a gente mistura um pouco o sal com milho, fosfato, ureia e caroço de algodão".

Contraste
Quem visita a Fazenda Caroá pode ver a diferença entre o verde que existe ao longo do Riacho Carapuças e as terras vizinhas, que foram brocadas e queimadas para receber o plantio do milho e do feijão. Em outras áreas onde essa técnica obsoleta foi usada, é muito claro o sinal de degradação.
Zé Artur Padilha destaca que, no conceito Base Zero, "as plantas são a base da vida, e a água é o segredo para manter os animais bem nutridos. O homem insiste em não seguir o curso normal do que nos ensina a natureza. Por isso sofre constantemente diante dessas adversidades".

MEL DO CEARÁ PARA O MUNDO
Fácil manejo, lucro garantido e paixão
Agricultor substitui todas as atividades pela criação de abelhas, e pretende divulgar mais as práticas


Apuiarés. Se existe uma atividade econômica na zona rural que convive com as oscilações climáticas do Semiárido brasileiro é a produção de mel de abelha. São muitos exemplos pelo sertão e, mesmo com a redução da produtividade em cinco anos de seca, o lucro é garantido porque há demanda e valorização. Em Lagoa das Pedras, município de Apuiarés, no Norte do Estado do Ceará, Everardo Alves, 35 vive hoje exclusivamente da meliponicultura (criação de abelha sem ferrão) e apicultura (criação de abelhas com ferrão), direta ou indiretamente. Ele conta que foi introduzido na atividade em meados de 2005. Antes trabalhava na roça tradicional de sequeiro (aquela que depende da chuva), onde produzia principalmente milho e feijão, e também criava ovinos.

Conservação
Importante destacar que a atividade tem no combate ao desmatamento uma das estratégias de desenvolvimento. Hoje Everardo possui 60 caixas na apicultura e 40 na meliponicultura. No ano passado, o valor do litro do mel da abelha-europeia (Apis mellifera) era R$ 15 e da jandaíra (Melipona subnitida duke) era R$ 100. Com a seca e a redução na produção, hoje o valor é, respectivamente, R$ 25 e R$ 150. O projeto de vida de Everardo é a produção exclusiva do mel de jandaíra, cuja qualidade, usos medicinais e manejo, pelas exigências da própria espécie, que tem preferência pelas flores de determinadas plantas nativas, elevam o seu valor no mercado.
O produtor lembra que a propriedade, de 31 hectares, foi inteiramente desmatada pelo seu avô. "Ele brocou tudo", resume. Mas, depois de 15 anos sem que ele ou o seu pai reproduzissem o costume, afirma que a vegetação vem se regenerando naturalmente. E garante que nem precisou replantar nada.
Everardo conta que cursos do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador (Cetra), em Itapipoca; e da Agência de Desenvolvimento Local (Adel), em Pentecoste, foram os maiores incentivadores para a proteção da natureza e do solo.

Estratégias
Para garantir uma boa produtividade, Everardo destaca a importância do uso de equipamentos adequados. Outro importante "pulo do gato" foi o aprendizado de como alimentar as abelhas no período da seca para mantê-las nas caixas, produzindo. Para isso, ele as alimenta utilizando o mel não comercial diluído em água que distribui em tampinhas dentro das caixas. "Isso deixa o enxame forte no verão", garante. Neste ano, por exemplo, as árvores que as jandaíras mais gostam praticamente não floresceram. "Dos cinco anos de seca, o pior foi este". Com o ano fraco, tem se sustentado principalmente de palestras e projetos, mas nem pensa em desistir.

Everardo explica que não é necessário uma grande chuva para o produtor de mel. Se tiver seca verde, que é quando chove, a vegetação fica verde, mas não é suficiente para o desenvolvimento das plantações, já basta. "Num ano mais ou menos dá para tirar o investimento e lucrar. É um dos roçados melhores que tem", destaca.
Um dos aspectos da atividade que Everardo achava difícil, que era chegar aos empresários, também foi superado por meio, principalmente, da participação em eventos, como o Seminário Nordestino de Pecuária (PecNordeste). "Eles ficaram sabendo que não usamos agrotóxico por aqui e se interessaram", conta.

"Aprender a lidar com isso sem conhecer nada foi difícil, mas meu sonho é aprender e ser pesquisador e professor na área para ter a honra de ensinar a quem vier depois", afirma Everardo, que hoje participa de associação que tem convênio com um grupo de pesquisa da Universidade Federal do Ceará (UFC) e a sua meta é, daqui a cinco anos, começar a exportar. (MC)

 

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