Dia Mundial da Alimentação
16.10.2017
Lei orçamentária de 2018 pode provocar aumento da fome no Brasil
Cortes profundos nos investimentos sociais de combate às desigualdades podem frear a promoção de segurança alimentar no país.

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Por Hugo de Lima - Asacom

A produção de alimentos está ameaçada com os cortes federais à agricultura familiar. | Foto: Manuela Cavadas

Num momento em que a ONU alerta para o aumento da pobreza no mundo, o governo brasileiro propõe para 2018, de acordo com a Proposta de Lei Orçamentária Anual (PLOA), uma série drástica de cortes nos investimentos sociais que, na prática, significará o aprofundamento das desigualdades sociais brasileiras, principalmente para os povos do campo. Acesso a crédito rural, investimentos para reconhecimento de comunidades tradicionais e obtenção de terras para a reforma agrária são algumas das rubricas que terão cortes profundos, entre 60 e 80%. No caso do Programa de Aquisição de Alimentos, o PAA, que incentiva a criação de renda para milhares de famílias agricultoras brasileiras, os cortes serão de 71,3% para promoção de estoques e de 99,8% para compra com doação simultânea, aquisição de sementes e compra direta. Essas reduções levarão o programa praticamente à extinção.

Hoje, 16 de outubro, é o Dia Mundial da Alimentação, promovido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. Diante do retrocesso que a agricultura familiar, responsável por mais 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros e brasileiras, terá com esses cortes, a data chega com diversos dilemas. Marginalizar as populações do campo não só vai provocar a insegurança alimentar das famílias agricultoras, como também, desorganizar os ciclos de produção de alimentação saudável no país.

Desde 2006, o Brasil possui a Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional (nº11.346 de 15 de setembro de 2006). Essa Lei estabelece as definições, princípios, diretrizes, objetivos e composição do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). O objetivo desse sistema foi desenvolver junto às organizações da sociedade civil um diálogo permanente para formular e implementar políticas, planos, programas e ações junto ao poder público, com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada, levando em conta dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais. Uma legislação que se tornou “uma conquista cidadã”, como define a antropóloga Maria Emília Lisboa Pacheco em artigo recente.

Os cortes em 2018 fazem parte de um pacote de desinvestimento que tem sido praticado pelo governo brasileiro nos últimos anos, inclusive no governo anterior. É importante citar a desmobilização dos Conselhos que foram responsáveis por importantes conquistas no campo da alimentação saudável, ajudando a construir políticas e ações importantes para o fortalecimento da segurança alimentar, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf), voltado à reforma agrária e à agricultura familiar, e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

Para a ONG Oxfam Brasil, em seu último relatório A distância que nos une, “não é possível erradicar a pobreza no mundo sem reduzir drasticamente os níveis de desigualdade. Níveis extremos de desigualdade interferem na capacidade do Estado e da sociedade redistribuírem renda, erguendo barreiras à mobilidade social e mantendo parcelas da população à margem da economia”. Por isso, é preciso que “os orçamentos públicos das três esferas – federal, estadual e municipal – assegurem recursos adequados para políticas sociais, e que governos os executem. É fundamental a expansão de gastos públicos em educação, saúde, assistência social, saneamento, habitação e transporte público, sendo imperativa a revisão do teto de gastos imposto pela Emenda Constitucional 95.” É justamente o caminho contrário pelo qual o PLOA nacional está configurado para o ano que vem.

O agricultor Adeildo Barbosa da Silva, que também é coordenador da Associação dos Agricultores/as Agroecológicos de Bom Jardim (Agroflor), em Pernambuco, afirmou que a renda obtida pelo PAA é fundamental para as famílias associadas. "Hoje nós temos 109 famílias e no último projeto, de 369 mil reais, foram 49 propostas para esses associados. O que vai acontecer no ano que vem é que [se o corte for mantido] o agricultor vai ficar sem essa renda vinda do PAA". O impacto direto não só será sentido pelas instituições que recebem a compra dos mantimentos (hospitais, postos de saúde, escolas…), mas também afetará o equilíbrio do ciclo de mantimentos agroecológicos que, no caso da Agroflor, enriquece algumas feiras agroecológicas do estado. “Se eu vou entregar [ao PAA], por exemplo, mil quilos de maracujá, eu planto mil e duzentos, mil e trezentos. E esse excedente vai suprir feiras livres e outros lugares de comercialização. Sem o PAA, eu não tenho garantia de demanda pra produzir”.

Essa também é a visão de João Evangelista dos Santos, que é membro do Consea no estado do Piauí pelo Fórum Piauiense de Convivência com o Semiárido (ASA Piauí), no qual também integra o GT de Agroecologia. “Vai prejudicar bastante as famílias que produzem dentro do processo agroecológico de alimentos. Essas famílias têm uma visão e um compromisso com os alimentos sem agrotóxicos, gerando qualidade de vida para suas comunidades e também para os consumidores finais. Essas famílias tomaram consciência de que alimentos transgênicos podem causar problemas de saúde e dependência de produção. Eles não têm uma qualidade de nutrição dentro do direito humano à alimentação adequada.”

Se a produção não tem demanda, as famílias podem não ter como se sustentar apenas dos produtos do campo. A agricultora Cícera Alves de Araújo, conhecida como Silvanir, moradora do Sítio Peixoto, no município de Santana do Cariri, Ceará, trabalha fornecendo aves (frango), bolos, doces, sequilhos e outros produtos elaborados a partir de sua produção agroecológica. A agricultora fornece mensalmente esses produtos para escolas há pelo menos 10 anos. Foi essa renda que tornou possível sua família trabalhar inteiramente na agricultura, sem a necessidade de se ausentar da terra para conseguir dinheiro em outros tipos de trabalho. “É uma renda muito boa. Sem essa renda e sem o trabalho na feira agroecológica todos os sábados, eu não conseguiria trabalhar apenas como agricultora. Se reduzir, a gente perde muita coisa, pois a gente sempre tem a esperança de crescer mais.” Além do PAA, Silvanir também acessa o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que funciona de forma semelhante através das prefeituras.

Situação da fome voltou a crescer - Pela primeira vez em mais de uma década, o número de pessoas atingidas pela fome voltou a crescer. É o que afirma um relatório global divulgado recentemente pela FAO referente ao ano de 2016. Segundo o documento, 815 milhões de pessoas, ou 11% do mundo, passam fome. São 38 milhões de pessoas a mais do que em 2015.

Em julho, um grupo de 40 organizações da sociedade civil, do Brasil e do exterior, encaminhou à ONU, durante a reunião do Conselho Econômico e Social, em Nova York, um alerta sobre o risco do país regressar à lista de nações do Mapa da Fome. Depois de anos de execução de um conjunto de políticas públicas sociais bem sucedidas, do qual faz parte o PAA, o Brasil finalmente saiu dessa lista em 2014. Mas os anos de crise e o PLOA para 2018 podem vulnerabilizar as populações que vivem em posições tênues à pobreza. Citando exemplos “sul-americanos”, o diretor-geral da FAO, José Graziano, recentemente fez críticas aos governos que promovem cortes nos programas sociais para resolver problemas fiscais.

Na semana passada, o secretário nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), Caio Rocha, esteve em Roma para apresentar os compromissos brasileiros para a Década de Ação em Nutrição. Esses compromissos se respaldam no Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan) que possui 121 metas e 99 ações organizadas por 20 gabinetes federais a partir dos grandes desafios voltados à alimentação dos brasileiros. Pensando nisso, o PLOA 2018 é, no mínimo, um paradoxo.

Processo da tramitação do orçamento - Todos os anos, o Orçamento anual é enviado ao Congresso pelo/a presidente da República. O Congresso tem até o dia 22 de dezembro para analisar, fazer alterações e votar o texto da Proposta de Lei Orçamentária Anual. Antes de ser votado pelo Plenário, a proposição precisa passar pela Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO). Ainda de acordo com o cronograma federal, até o próximo dia 20 de outubro, os congressistas estarão enviando propostas de emendas orçamentárias, o que pode aumentar os valores para os investimentos sociais. A receita total da União para 2018 será de 3,6 trilhões de reais.