Mês das águas
16.03.2018
Fóruns mundiais realizados pela sociedade civil fortalecem a luta contra a privatização da água no Brasil

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Por Verônica Pragana - Asacom

A crise hídrica mundial provocada pelo uso insustentável do recurso pelo agronegócio, que consome 70% da água doce de todo mundo, vai piorar mais ainda. O prognóstico se baseia nos sinais de avanço rápido e silencioso da venda das reservas subterrâneas do Brasil para corporações internacionais. Com um manancial de 15% da água doce do mundo, o país virou uma verdadeira mina ‘líquida’ em negociação, principalmente, com o predomínio da visão neoliberal na política.

Uma das evidências disto é a consulta pública do Senado Federal sobre o Projeto de Lei 495/2017, que “altera a Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, para introduzir os mercados de água como instrumento destinado a promover alocação mais eficiente dos recursos hídricos”, conforme está escrito na página do site do Senado. Essa consulta vem sendo denunciada como mais uma manobra do governo para criar condições de privatização de um dos aquíferos mais importantes do planeta: o Guarani.

Presente em quatro países sul-americanos, aproximadamente 70% desse reservatório de água está localizado no Brasil

Neste contexto, vai acontecer na semana que vem (18 a 23/03), em Brasília (DF), o Fórum Mundial das Águas (FMA), denunciado pela sociedade civil organizada como um balcão para privatizar a água mundial e apelidado de Fórum das Corporações.

Por outro lado, a resistência é feita pelas organizações, articulações e movimentos da sociedade civil de todo mundo. E uma das expressões desta resistência é a realização de dois fóruns mundiais que, não por acaso, acontecem também no Brasil no mesmo mês das águas: o Fórum Social Mundial (FSM), que começou na terça-feira desta semana (13) e termina hoje (16), em Salvador (BA), e o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), que será também em Brasília no mesmo período do fórum corporativo.

“As organizações envolvidas no Fama pretendem influenciar os Estados e organismos multilaterais internacionais no sentido de garantir um direito humano essencial que está sendo cada vez mais violado em função do lucro de empresas”, comenta Rafael da Koinonia, que integra o PAD Brasil (Articulação e Diálogo Internacional), uma das organizações propositoras das atividades na Tenda Casa Comum do FSM.

Para Valquíria Lima, da coordenação executiva da ASA pelo estado de Minas Gerais, a luta pela água como direito ultrapassa a questão do acesso e deve ser enfrentada numa plataforma global de proteção dos direitos dos povos e comunidades.

Para concretizar uma frente ampla e internacional em defesa da água como direito humano, as organizações da sociedade civil de todos os continentes estão firmando alianças entre si e transformando “as lutas nacionais em lutas internacionais”, como disse Moisés Borges, da coordenação do Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), pelos estados da Bahia e Pernambuco, na mesa “Contrapondo-se à apropriação as água pela agricultura (de exportação) – Pelo direito dos povos à água e à alimentação”, realizada na tenda Casa Comum, na quarta-feira passada (14).

Mesa internacional sobre mercantilização da água no FSM, na Tenda Bem Comum, quarta-feira passada

Esta mesa representou bem a frente unificada em defesa da água como bem comum. Participaram dela representantes de organizações da sociedade civil da Índia, Moçambique, Brasil e de Agências de Cooperação Internacional sediadas na Europa. E nas falas de cada um é possível enxergar o fio que alinhava as situações de pobreza, fome e crise hídrica presentes no planeta.

Tanto no Brasil, como na Índia e em Moçambique, por trás dos conflitos por água, terra e biodiversidade, foram citados os monocultivos como algodão, cana de açúcar e eucalipto. A exportação destas commodities tem sido chamada de “comércio virtual da água”, uma vez que são culturas que consomem muita água e sua produção é destinada a países industrializados do hemisfério norte.

“O Norte usa a maior parte da água e esta agenda deve ser levada em conta por este hemisfério. Os países industrializados devem prestar atenção ao que estão consumindo e são produzidas, principalmente, nas áreas secas. Somos parte da crise hídrica global”, comentou Andrea Müller-Frank, da organização de cooperação internacional alemã Pão para o Mundo, que também esteve na mesma mesa que Borges no FSM. “A Alemanha é um país que importa 1/3 dos produtos agrícolas de países que enfrentam a escassez de água, como a India, Paquistão e o Egito”, acrescentou.

Uma das formas que a sociedade civil tem encontrado para combater a pressão privada no uso da água é constranger as corporações, denunciando as suas pegadas ambientais. “De onde vem os recursos das empresas que estão em Correntina?”, pergunta Andrea fazendo um link entre o capital estrangeiro e o conflito por água gritante neste município do Cerrado, localizado no oeste da Bahia. O Cerrado é considerado a caixa d´água do Brasil e da América do Sul e, apesar de sua importância, sofre um acelerado processo de desmatamento.

“Calcula-se que o Cerrado perde uma área equivalente a 2,6 campos de futebol por minuto. Se continuar neste ritmo, o bioma desaparecerá em 2030”, acrescentou Valquíria Lima, da ASA.

Água, lucro, ambição - Pela sua riqueza hídrica, o território de Correntina é explorado pelo agronegócio nacional desde a década de 1960. Dos anos 2000 para cá, várias empresas estrangeiras aportaram na região ampliando a pressão sobre as águas, a biodiversidade e tomando os territórios das comunidades tradicionais que vivem ali desde sempre. O rastro de destruição do meio ambiente é extenso e os conflitos sociais intensos.

“Só a fazenda Igarashi, do grupo japonês de mesmo nome, é responsável por ter secado 30 nascentes de água do rio Arrojado, assim como 18 metros do rio na região próxima à nascente. A outorga para exploração da água só desta fazenda é de 180 mil litros/dia, o que daria para abastecer 2 milhões de pessoas”, revelou Borges. O rio Arrojado é um dos que desaguam no rio São Francisco que corta uma parte do território semiárido brasileiro.

Devido a estas questões, em novembro passado, Correntina foi palco de uma mobilização popular que ganhou projeção internacional e nacional e que conseguiu minimizar, pelo menos temporariamente, a pressão do agronegócio sobre a água na região.

Campanha Cerrado - No momento em que esse debate acontecia no campus da Universidade Federal da Bahia, em Salvador, a equipe da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado comemorava a adesão de mais de 50 mil pessoas à petição que defende que os biomas Cerrado e Caatinga sejam reconhecidos como patrimônios nacionais e, desta forma, fiquem mais protegidos do avanço do agronegócio. Este resultado foi alcançado após o esforço de levar a campanha para os Estados Unidos e países da Europa que estão enviando recursos para a compra de terras no Cerrado para especulação ou exploração por empresas do agronegócio.

Pequeno, mas simbólico, este resultado tem muito a dizer a quem defende a água como um bem comum e não como mercadoria. Ele testemunha que as crises mundiais são enfrentadas e superadas quando se conseguem enxergar as relações invisíveis que as sustentam.