Dia Mundial da Água
22.03.2018
Tempos de luta pela água
Além da escassez da água e das mudanças climáticas, é preciso evidenciar que os interesses econômicos e políticos querem se sobrepor ao direito dos povos

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Por Fernanda Cruz - Asacom*

Investimento público de quase R$ 10 bilhões para quem? | Foto: Blog Almacks

A água (ou a falta dela) sempre esteve na centralidade do debate no Semiárido. Até se chegar nas políticas de convivência com a região que hoje existem e que, reconhecidamente, vêm democratizando o acesso à água de qualidade na região, muitos povos foram tirados dos seus territórios para que açudes e barragens fossem construídos, sem que isso mudasse significativamente a realidade dessas populações.

Mesmo após a chegada de políticas que valorizam o saber local e que provocam um menor impacto ao meio ambiente, a exemplo daquelas que disseminam as cisternas de placas de cimento junto às moradias dos povos do Semiárido dando autonomia às famílias, a disputa com as grandes obras só tem se intensificado ao longo dos anos. De um lado, temos um milhão de famílias com acesso à água de qualidade para beber e cozinhar através das cisternas de 16 mil litros, que custam, em média, R$ 3,5 mil. De outro, temos a transposição do rio São Francisco, que após 13 anos de obras se evidencia como mais uma obra cuja finalidade está em beneficiar os grandes produtores e não o povo pobre, que ainda padece sem abastecimento regular de água e que até o momento custou quase R$ 10 bilhões.

“A área a ser atingida pela obra é muito pequena em relação ao conjunto do Semiárido. Além disso, a população esparsa, que é normalmente a que mais necessita de água para beber, por exemplo, está situada muito longe da área da transposição. As populações não estão na centralidade do projeto, porque a real finalidade é criar ou ampliar o polo de fruticultura de exportação, aos moldes do que existe em Juazeiro e Petrolina, além de favorecer a criação de camarões em Fortaleza. Deste modo, a transposição não está a serviço do povo. Por trás dela, está a privatização das águas e o hidronegócio”, explica Naidison Baptista, da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) pelo estado da Bahia.

Segundo o pesquisador João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), a transposição vem evidenciando que o problema da região não é a falta d’água, mas a má gestão desse recurso. “Atualmente saem diariamente 9m³/segundo de água de Itaparica (BA), mas apenas 3,5m³/seg. chegam em Boqueirão (PB). Dessa vazão, apenas 1,5 m³ é destinada à população, que agora deixará de receber por conta dos reparos que serão feitos nos açudes do Eixo Leste, anunciados pelo Ministério da Integração. No entanto, mesmo com a descontinuidade do abastecimento, Boqueirão passará a abastecer Acauã (PB). É um modelo que não se sustenta”, explica.

Mas levar em consideração estes fatos, requer disposição e interesse político. E isso não tem sido demonstrado pelo presidente Michel Temer. Durante a abertura 8° Fórum Mundial da Água, no dia 18, em Brasília, ele destacou o quanto essa obra era importante para combater a seca, como se a transposição fosse a redenção para o Semiárido brasileiro.

“Esse é um pensamento equivocado porque, em primeiro lugar, seca não se combate, se convive com ela. Em segundo lugar, há muitos anos que o povo do Semiárido vem demonstrando que, a partir da estratégia de estocagem de água, alimento e sementes crioulas, é possível viver bem na região. Essa afirmação de Temer nos remonta aos anos 1970 quando milhares de pessoas morriam em decorrência da seca e da fome porque as políticas públicas era todas voltadas para quem tinha terra e poder. Estamos no final de um longo período de seca, considerada uma das piores dos últimos 30 anos e ninguém morreu por conta dela. Com certeza isso não é mérito da transposição”, rebate Valquíria Lima, da ASA pelo estado de Minas Gerais.

Roselita Victor: O que vivemos hoje não está descolado da realidade de outros povos e etnias

Cada um com suas especificidades, mas os conflitos vividos no Semiárido brasileiro, provocados pelo choque de interesses políticos e econômicos, se repetem em muitos locais do Brasil e do mundo. Em alguns poucos espaços no Fórum das Corporações, como tem sido chamado o 8º Fórum Mundial da Água; e, sobretudo, no Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), que teve a luta dos povos pela água como direito na centralidade do debate, foram apresentadas realidades diversas do México, Palestina, Moçambique, Índia, Suíça, Cuba e até de outras regiões do próprio Brasil, nas quais a água é tratada como mercadoria e não como recurso imprescindível à vida.

Durante a Plenária Unificada 3 – Experiência de Luta e Resistência, no Fama, Muhammed Muteawa, integrante da Via Campesina Internacional e membro da Federação do Trabalho Agrícola da Palestina explicou a situação da crise hídrica sofrida na Palestina, em especial na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Segundo ele, a falta de acesso à água naqueles territórios não é resultado de mudanças climáticas, nem da ação de grandes corporações transnacionais. “A crise da água na Palestina é uma crise fabricada. É um assunto político, em um dos países em que chove todo ano e não deveria lidar com falta de água”, garante Muhamed. “A primeira responsável por essa crise é a ocupação israelense, que controla as fontes e os recursos da água”, completa.

Luis Muchanga, da União Camponesa de Moçambique | Foto: Portal de Angola

Em Moçambique, a realidade não é muito distinta. Segundo Luis Muchanga, da União Camponesa de Moçambique (Unac), embora o país não esteja na lista daqueles que vivem um estresse hídrico, os pequenos agricultores não podem usar a água das suas comunidades, porque elas estão contaminadas pelas grandes indústrias. “Existe uma distância muito grande entre o que se promete na política e na prática desses políticos, após eleitos. (...) Precisamos de fato que a FAO se responsabilize por construir um pacto político, econômico e social que nos resguarde de situações como essas”, afirma. Ele, que contou a sua história nos dois fóruns em Brasília e também no Fórum Social Mundial, destaca a importância dos povos falarem sobre isso: “Temos que usar nossa voz para romper essas amarras”.

Segundo Roselita Victor, agricultora e integrante do Polo Sindical da Borborema e da ASA Paraíba, que compôs as falas da Plenária Unificada 3, “entender o contexto de outros povos e etnias é muito importante para gente, porque não estão deslocados da realidade que temos vivido hoje no Semiárido. No caso do povo palestino, por exemplo, eles vivem muitos ataques, mas é um povo que resiste e luta sempre. Temos muito a aprender com eles, assim como com os companheiros do México que vêm defendendo a água como bem comum; e as pescadoras de Salvador, que estão em luta para continuar no mar, entendendo que ele também é um bem comum e que não pode ser privatizado”.

Cerca de cinco mil participantes do Fama em marcha em Brasília no Dia Mundial da Água

Nas ruas - Cerca de 5 mil pessoas dos movimentos e organizações da sociedade civil reunidos no Fama seguiram em marcha hoje (22) pelas ruas de Brasília, reivindicando o direito à água e alertando a população local e participantes do fórum das corporações sobre as reais intenções desse espaço e os riscos de mercantilização das águas. Para Valquíria é fundamental que o povo vá às ruas para mostrar resistência num momento de tanta perda de direitos. “Precisamos mostrar para toda a sociedade que é preciso debater e olhar o tema da água não apenas na perspectiva da escassez e das mudanças climáticas. É preciso entender que tudo que está ocorrendo em torno da água, inclusive essa disputa de narrativa, tem interesses econômicos por trás. Precisamos repensar, por exemplo, o nosso modelo de produção, pois o agronegócio não concentra apenas terra, mas também água, que muitas vezes, mesmo que indiretamente, é tirada das comunidades”.

Em sua Declaração Final, o FAMA também deixa claro que a luta pela água como direito não termina com o evento. “O compromisso fundamental é de se manter em luta, enraizar os processos de construção até aqui realizados e manter a mobilização viva”.


* Com informação da Assessoria de Comunicação do Fama