Rumo ao IV ENA
25.05.2018
Rios de vida e de luta
Agroecologia contribui para enfrentamento a ameaças nos territórios do Pajeú e Araripe em Pernambuco

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Por Elka Macedo - ASACom

A adoção da agroecologia como forma de vida transforma a vida de centenas de famílias nos sertões do Semiárido | Foto: Elka Macedo/arquivo Caatinga

Assim como as águas dos rios Pajeú e Brígida desaguam no São Francisco, os rios de vida e de luta dos territórios pernambucanos do Pajeú e Araripe também desaguam de forma semelhante nas histórias de resistência que marcam a trajetória dos povos que habitam as regiões, sobretudo os camponeses e camponesas. De um lado, a extração de madeira da caatinga, os grandes projetos de desenvolvimento, a exemplo das obras da transposição e da Transnordestina, e a violência contra a mulher são grandes ameaças para quem vive nesses territórios; de um outro lado, a organização social em rede e a adoção da agroecologia despontam como horizontes de luz e de enfrentamento a estes problemas.

“As instituições têm se constituído como estratégicas para a resistência camponesa numa perspectiva agroecológica. Hoje a Agroecologia é o mais forte anúncio em defesa dos povos do Pajeú, sua cultura, seus saberes; em defesa da Caatinga e do Rio. São as organizações que vem provocando o debate da convivência com o Semiárido, defendendo e pautando a construção de políticas voltadas pra essa dimensão no território, nessa perspectiva agroecológica”, salienta a agrônoma, Rivaneide Almeida, que trabalha no Centro Agroecológico Sabiá, organização que atua na região.

Mas no campo dos desafios, as duas regiões têm uma lista de fatos que ameaçam constantemente a efetivação da agroecologia e consequentemente a convivência com o Semiárido.  A recente Rede Agroecológica do Pajeú apontou que há um processo de desmatamento desenfreado. Segundo o grupo, 300 caminhões de lenha da Caatinga circulam nas rodovias do território; além disso, há a contaminação da Barragem de Serrinha, maior reservatório de água da região com capacidade de armazenamento para 311 milhões de m3; o uso indiscriminado de agrotóxicos, abuso sexual de crianças e adolescentes e violência contra a mulher.

Sobre a violência para com as mulheres, a educadora social e membro da Rede de Mulheres do Pajeú, Ana Cristina Nobre, explica que não há como pensar em agroecologia sem que se pense no enfrentamento a este tipo de violência. “Não existe produção agroecológica se a mulher for violentada no seu quintal. Que produção agroecológica é essa? A gente considera que a violência contra a mulher afeta em todos os âmbitos do ponto de vista da produção, da autoestima, e das ações que são realizadas em conjunto. A violência tem um impacto direto e a gente vem pensando em ações conjuntas, e vem construindo estratégias para se fortalecer e pensar conjuntamente que caminhos a gente deve seguir para melhorar essa intervenção.  O grande desafio é que as instituições devem estar abertas para esta discussão que não é só do ponto de vista da produção, mas da qualidade de vida das mulheres”, afirma.

Ela complementa explicitando que são nos quintais produtivos mantidos pelas mulheres que além da produção de alimentos, se produz conhecimento e vida e que a invisibilidade do papel das mulheres e a não promoção da qualidade de vida destas sujeitas é um grande desafio para a adoção, de fato, da agroecologia. “A agroecologia não é só o meio de produção, ela tem que ser um meio de vida, de qualidade de vida para as pessoas que estão no campo. Muitas das mulheres que estão na produção agroecológica são violentadas. Se a gente não se determinar pra enfrentar isso no cotidiano, a gente vai continuar dizendo que a agroecologia é apenas um modo de produção”, denuncia Ana.

Trecho da transnordestina entre os municípios de Ouricuri e Trindade no sertão do Araripe Pernambucano | Foto: Elka Macedo/arquivo Caatinga

A cerca de 300 km de distância o território do Araripe encara situações bem parecidas, lá a luta do Fórum de Mulheres ainda precisa pautar o acesso a políticas públicas de apoio e acolhimento para as mulheres em situação de violência. Na região, não existe sequer uma Delegacia da Mulher. Outros desafios têm a ver com a implantação de grandes projetos como a recente instalação de torres eólicas na Chapada, extração do gesso, uso de agrotóxicos, desmatamento da caatinga, e a linha férrea Transnordestina, que corta boa parte dos municípios e ainda é um grande “elefante branco”, como denuncia um dos coordenadores do Centro de Assessoria e Apoio aos Trabalhadores/as e Instituições Não-Governamentais (Caatinga), Giovanne Xenofonte.

“A Transnordestina gastou rios de dinheiro, cortou as propriedades e desviou vários cursos d’agua. Analisamos que a obra pode ter sido a causa de diversos problemas no período das chuvas, quando algumas casas foram inundadas. A obra está parada porque não está passando trem! Outro projeto que vai atrapalhar a agroecologia e a agricultura familiar no território é o Canal do Sertão. Há um estigma de que ele é uma coisa boa e quem for contra isso é porque não quer o progresso e quer que as famílias continuem pobres. Isso é colocado como a salvação da lavoura, não se tem um debate socialmente de como o projeto será implantado e também não se tem aprofundamento sobre a questão técnica o que é mais ameaçador”, alerta, Xenofonte.

Para além das grandes obras, o contexto político e econômico que o país enfrenta tem reverberado diretamente nos modos de vida das populações, sobretudo pelos cortes de investimentos em políticas públicas e programas que estavam garantindo condições mínimas para que as famílias permanecessem em seus territórios e enfrentassem a estiagem prolongada que perdurou por sete anos. Mas, de acordo com Giovanne, isto também tem contribuído para fortalecer os movimentos sociais e as ações em rede.

“A gente analisa que algumas das políticas desenvolvidas no governo mais progressista, como o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], o Água para Todos, Bolsa-Família tiveram cortes severos, então todos esses processos de convivência com o Semiárido, de construir estoques, de fortalecer a resistência pra conviver, praticamente parou após o golpe. Mas por outro lado, a Frente Brasil Popular foi constituída no território, os movimentos sociais têm feito mobilizações para fazer a denúncia e conseguem se manter resistindo. Pós golpe conseguimos fortalecer os movimentos. E a agroecologia nos ajuda no sentido de dizer que existem experiências vivas no território, legítimas e com capacidade de dar respostas. Mesmo em períodos de ameaça, de negação, a articulação em rede tem mantido a esperança. Eu vejo muito as experiências como sementes que estão guardadas para serem plantadas quando as condições forem sendo possíveis”, afirma Giovanne Xenofonte.

Diálogo Campo x Cidade

O contexto histórico de denúncias e anúncios dos territórios do Araripe e Pajeú serão apresentados e debatidos durante o IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) que acontece de 31 de maio a 03 de junho na capital mineira. Neste sentido, as delegações se preparam para ambientar o espaço das tendas que farão parte da programação do segundo dia do evento (1º de junho). Na ocasião, serão feitas as apresentações com elementos que lembrem a cultura e as características destes lugares e ajudem os/as participantes a refletir sobre os diferentes contextos de interação da agroecologia e como ela tem contribuído para estreitar o diálogo entre o campo e a cidade. A opção é pela construção do que eles e elas têm chamado de Rio de Vida dos territórios. Na proposta será feita uma linha do tempo acerca dos fatos que influenciaram diretamente na construção da agroecologia nestes lugares.

Na opinião de Rivaneide Almeida, há avanços neste diálogo, especialmente na relação estabelecida durante as feiras. “As feiras agroecológicas fazem um diálogo muito direto com o povo da cidade. A partir delas há um diálogo com as cidades colocando a realidade do campo. A gente tem percebido que tem havido uma maior interação porque as pessoas que vão à feira e têm esse diálogo com os/as agricultores/as têm outra visão sobre a realidade do campo. Outro aspecto importante é o debate com a comunidade escolar que também é estratégico pra pensar essa relação campo x cidade e este debate tem acontecido, inclusive, nas escolas da cidade”, afirma se referindo ao movimento que tem acontecido no sertão Pajeú.

Neste contexto, Giovanne faz uma outra leitura que  traz essa relação como um grande desafio. “O diálogo campo x cidade ainda é bem desafiador, tem muita coisa pra gente discutir. Acho que tem alguns avanços, não só a partir das feiras, mas também de alguns atos de resistência, porque evidenciaram muito como o golpe impacta a agricultura e como a agricultura impacta no comércio. Mas ainda tem grandes desafios principalmente na comunicação desta relação campo x cidade. É desafiador porque nós que estamos protagonizando este debate precisamos aprofundar este diálogo e entender melhor em que base ele vai ser feito”, diz.

A adoção da agroecologia está no horizonte do que hoje contribui para que as populações, sobretudo do campo, alimentem a esperança de dias melhores frente à todo o contexto de perdas de direitos e de implantação de grandes projetos que não respeitam os modos de vida dos povos. É desafiador, mas a resistência das sujeitas e dos sujeitos que habitam territórios como os do Pajeú e do Araripe em Pernambuco contribui para que o enfretamento seja perene.