Da periferia ao centro
09.08.2018
“A Caravana é o povo do Semiárido dizendo que nós não vamos ficar calados no nosso lugar”
O povo do Semiárido sempre precisou se mover para fugir da fome. Se antes essa mobilidade era mais comedida, em 2018, a Caravana cruzou quatro das cinco regiões do Brasil

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Por Verônica Pragana - Asacom

Antes de chegar ao centro político do país, a Caravana fez um percurso por outras regiões para falar da fome| Foto: Elka Macedo

“Qual o sentido que se atribui à morte da vereadora Marielle Franco do Rio de Janeiro?”, pergunta Alexandre Pires, da Coordenação Executiva da ASA, já no encerramento de sua fala na audiência da Caravana Contra a Fome com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) na Câmara dos Deputados, em Brasília, na terça-feira passada (7).

A pergunta, que nem é sua, vem à mente para trazer o espírito que moveu o Semiárido, representado por 102 pessoas, por mais de quatro mil quilômetros até chegar a Brasília. E, Alexandre repete, pausadamente, cada palavra da resposta que ele também escutou um dia: “A morte de Marielle é o recado aos pretos, aos pobres, aos indígenas, aos quilombolas, à classe trabalhadora do Brasil. É um recado para dizer ‘Não saiam do seu lugar!’”

E, imediatamente, continua com palavras suas: “Eu entendo que a Caravana é uma contra resposta a essa indagação. A Caravana do Semiárido é o povo do Semiárido dizendo que nós não vamos ficar calados no nosso lugar. Nós não vamos voltar a protagonizar e aparecer nos índices de pobreza, de fome e de miséria que nos encurralaram durante os 514 anos. Não vamos ficar parados, calados, no nosso lugar. Nós vamos estar em movimento todos juntos com o conjunto dos movimentos sociais.”

A sentença e o momento guardam em si muita força simbólica. Primeiro, pelo lugar em que foi pronunciada: no centro do poder político do Brasil, num dos auditórios da Câmara dos Deputados, onde se constroem as leis do país, “na Casa do Povo”, como se referiu Alexandre no início de sua fala.

Segundo porque foi uma sentença legitimada por milhares de vozes cansadas de serem silenciadas pela vergonha da fome e de ser de uma região marcada pela imagem única da miséria. Vozes caladas pela grande injustiça social que desde sempre se fez presente no Brasil. E que, nos governos de Lula e Dilma, começaram a experimentar uma vida com um mínimo de direito de escolha: ficar na região ou migrar, parar os estudos ou ingressar em uma universidade, de não ter que trocar seu voto por água.

Escolhas dotadas do poder de mover a estrutura social do Brasil. Algo que parecia imóvel durante séculos em que os governantes decidiam pela manutenção do enorme fosso da desigualdade. É bom lembrar que, nos anos da ditadura militar, o Brasil guardava a contradição de ser a 8ª economia do mundo e pairava entre os três países com maior concentração de renda do mundo. Perdia só para Serra Leoa e Honduras.

Na audiência da Caravana com o Consea no Plenário II da Câmara dos Deputados | Foto: Elka Macedo

Essa situação de extrema injustiça social, que volta a se aprofundar com as medidas de austeridade tomadas pelo governo Temer e pelo Legislativo Federal, foi o mote da fala - também emocionada - da presidenta do Consea, Elisabetta Recine, na audiência na terça-feira passada.

“O nosso profundo agradecimento por este ato de coragem que vocês estão tendo de sair da invisibilidade novamente e mostrar para a sociedade brasileira que o que estamos vivendo hoje não é inevitável. Nós provamos que não é inevitável viver na situação de injustiça que tá voltando ao nosso país”, diz Elisabetta depois de referendar, como conselheira de uma instância de controle social do governo federal, um movimento visível a todos os que estão atentos às notícias do governo Temer:

“O que está acontecendo é uma desestruturação dos programas, uma desestruturação das equipes, das ações. E todas estas perdas têm endereço certo. Não é qualquer programa que está sendo desestruturado. São aqueles programas e equipes que estão relacionados aos programas que começaram a fortalecer os grupos mais vulnerabilizados da nossa sociedade, os agricultores familiares, as mulheres, seja na cidade, seja no campo, povos e comunidades tradicionais, população indígena, juventude, todos estes programas foram os que mais sofreram. E, quando a gente olha para onde está indo a economia do orçamento público, é aí. Porque as outras ações que perdoam dívidas, que perdoam desastre ambiental de Mariana, que perdoa a dívida de empresários, que perdoa a dívida do INSS, na Previdência, isso tá mantido. A austeridade não alcançou a essas ações”.

A fala de Elisabetta convergiu o que a integrante da Caravana, Marenise de Jesus Oliveira, havia contado minutos antes da sua história de vida:

“Teve um momento na história do Brasil que a gente foi salvo. A cisterna no pé da casa permitiu que a gente voltasse pra escola, que a gente tivesse alimento na mesa. Tivesse um prato colorido, não só preto e branco. Os meus sobrinhos hoje não sabem o que é um prato sem as cores. Foi o governo de Lula e de Dilma que nos permitiu vender para o PAA [Programa de Aquisição de Alimento], para o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], que a gente teve acesso ao PSAN, projeto de segurança alimentar e nutricional, que a gente participou de um governo que não nos deu o peixe, que nos ensinou a pescar no Semiárido, que nos permitiu a gente ter coragem para dizer que o Semiárido é o lugar mais bonito do mundo para a gente viver. Enquanto mulheres, a gente não pertence mais só à cozinha. Eu conclui minha formação. Na minha família, somos três que concluímos a universidade pelo Pronera [Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária]. Meu sobrinho concluiu Direito pelo Pronera. Temos diversos técnicos agrícolas, meus sobrinhos [que estudaram nas] das Escolas Famílias-Agrícolas do Semiárido Baiano. E eu digo isso porque represento a família do Semiárido que tem uma equipe multidisciplinar.”

E mais à frente, com o mesmo tom forte, derradeiro e decidido de Alexandre, Marenise anuncia: “Nós temos fome de comida saudável, de alimento, de segurança alimentar e nutricional. E a nossa fome não é fome só de comida. É fome de terra, de educação, de saúde. A gente não aceita esse retrocesso. E todos os dias desta Caravana é de grito e de muita solidariedade, de muita esperança que a gente alimenta. Por isso estamos neste lugar, neste espaço. A gente não aceita a PEC da Morte [que se transformou na Emenda Constitucional 95]. A gente não aceita o retrocesso. Esse governo golpista precisa parar de ameaçar. A gente tem direito de viver e viver em plenitude no Semiárido.”

Os caravaneiros que saíram pelo Brasil afora: 'A volta fome já aconteceu' | Foto: Miguel Cela

A Caravana Semiárido Contra a Fome levou uma mensagem sobre a vida dos invisíveis aos/às brasileiros e brasileiras de centros urbanos nestes tempos de pré-eleições para os cargos de Executivo e Legislativo federal e estaduais. Foi uma iniciativa para que a fome, a pobreza e a miséria entrem na agenda política e econômica do país mas, sobretudo, foi uma demonstração de força e capacidade de resposta do povo organizado e mobilizado do Semiárido. Como disse a estudiosa do Nordeste, economista e professora da Universidade Federal de Pernambuco, a pernambucana Tânica Bacelar, “o Nordeste tem uma força histórica, muita capacidade de resistência e de ir contra ao que não aceita”.

Vários episódios da história do Semiárido testemunham a coragem de lutar deste povo que aprendeu, na marra, que só se conquista aquilo pelo qual se luta. Foi assim também em 1993, quando centenas de pessoas, vindas de todos os recantos do Semiárido, ocuparam a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). A intenção era pautar a convivência com o Semiárido em contraposição à política de combate à seca hegemônica na época. No final desta década, as organizações da sociedade civil que atuavam na região criaram a Articulação Semiárido (ASA), uma articulação que hoje une mais de três mil entidades e que se construiu como rede propositora e executora de políticas públicas adequadas às necessidades da população do Semiárido rural.

“Sabemos que no Semiárido, no Nordeste, está a maioria do campesinato brasileiro. Não que a outra parte do povo trabalhador não seja importante, não lute, não resista. Mas o Semiárido, o Nordeste, tem uma tarefa maior nesta história toda, porque são os primeiros que sofrem com a fome, com a miséria, com as injustiças”, disse Rafaela Alves, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), quando recebeu a visita de solidariedade da Caravana pela greve de fome que está fazendo com mais seis militantes dos movimentos sociais do campo, no Centro Cultural de Brasília. A visita aconteceu um dia antes da audiência com o Consea, na segunda-feira passada (6).

A greve de fome não está apenas num grupo isolado aqui em Brasília. Está conectada a um conjunto de ações luta em todo o país | Foto: Adilvane Spezia/MPA

“Estamos passando fome por opção, uma opção política, de nos colocarmos como instrumento a favor do povo brasileiro. Mas, nesse momento, 12 milhões de brasileiros não conseguem nem se alimentar por imposição do sistema e mais quase 40 milhões brasileiros estão desempregados”, anuncia Jaime Amorim, da liderança nacional Movimento dos Trabalhadores/as Sem Terra (MST), que também aderiu à greve como uma forma de pressionar a instância máxima do sistema judicial brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, que detém o poder de decretar a prisão de Lula um ato inconstitucional uma vez que seu processo não foi julgado em todas as instâncias judiciais.

“A greve de fome não está apenas num grupo isolado aqui em Brasília. Está conectada a um conjunto de atividades em forma de luta que estão ocorrendo no país. A Caravana é uma parte dela. Mas estamos realizando várias atividades nacionais, o Dia do Basta, dia 10. A Marcha Nacional que começa agora, dia 10 também, para chegar em Brasília. No dia 15, vamos fazer uma grande mobilização aqui em Brasília. Gente que está aderindo a uma greve de fome não por pena de nós, por solidariedade a esse processo. O que se quer? Que este conjunto de ações, em forma de luta, possa ir, aos poucos, se encontrando e construindo um novo momento de mobilização, de massificação das lutas desse país, para mostrar ao STF que eles têm que ter uma posição porque, do ponto de vista legal, eles têm que respeitar a Constituição, que eles rasgaram, desrespeitaram, usurparam em nome do poder, do Capital”, conta Jaime visualizando uma nova forma de resistência e mobilização que surge dos movimentos populares.

Saiu do Nordeste, parou em duas cidades do Sudeste, foi até o Sul, em Curitiba, e subiu para a Capital Federal

Por onde andou – Movida a vários gritos de ordem, entoados em uníssono de forma arrepiante, a Caravana Semiárido Contra a Fome foi, no mínimo, ousada. No dia 27 de julho, partiu da cidade natal de Lula, Caetés, cravada no Semiárido pernambucano e com baixo índice de Desenvolvimento Humano medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Passou por Feira de Santana, na Bahia, depois Belo Horizonte (MG), Guararema (SP), Curitiba (PR) e subiu para Brasília (DF). No último destino, a Caravana teve uma audiência com a Confederação dos Bispos do Brasil e protocolou uma carta-denúncia no STF, na qual pontua as consequências das políticas da austeridade na vida de milhares de brasileiros e faz algumas recomendações ao órgão que deveria estar a serviço da justiça.

Em todas as cidades, com exceção da paulistana, houve atos públicos, ações de panfletagem nas ruas dos centros urbanos e muita interação com a população local. Na Bahia, Conceição Bacelar, agente comunitária de saúde de Feira de Santana, relata como foi o seu encontro com a Caravana: “Estava andando pelo centro da cidade e, de repente, vi este ato. Como gosto de movimentos sociais, como gosto de lutar pelo direito do povo, como eu sou povo, me ingressei a essa Caravana. Não estou junto, indo a todos os lugares, mas desejo todo sucesso (...) Aonde você presenciar esta Caravana passando, vá junto, ande junto, porque essa luta não é só deles. Essa luta é nossa. Contra a fome no nosso país.”

Um integrante da Caravana vindo da Paraíba, Emmanuel Barbosa, militante da Rede de Educação Cidadã (Recid) e da Comissão da Pastora da Terra (CPT), relata os encontros dos caravaneiros com os moradores das terras do Planalto Central, em Brasília: “Impressionante como os "iguais" se reconhecem, pois uma ruma de conterrâneos/as dialogou conosco no Plano Piloto na alegre panfletagem que fizemos. Teve gente que até pediu material para levar pra divulgar. Naquela multidão, pensávamos que ninguém ia nos perceber, mas se amostramos e muito e ficamos famosos/as. Eita! Eita!”

Quem fez acontecer - A Caravana foi uma construção conjunta entre os movimentos e redes da sociedade civil que lutam por justiça social no Brasil rural, através do fortalecimento da agricultura familiar. Foi uma iniciativa proposta pela ASA com o apoio e construção coletiva do Movimento dos Trabalhores/as Sem Terra (MST), Via Campesina, Contag e Frente Brasil Popular, com envolvimento direto do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), Movimento Camponês Popular (MCP), Levante Popular da Juventude, Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR) e Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Igreja Católica.

A ação não sairia do papel se não fosse a grande rede de solidariedade que se formou de forma invisível. Foram doações de comidas, ofertas de lugares para dormir, diversas mobilizações locais para levantar recursos financeiros. E houve também uma campanha de financiamento coletivo feito pela internet pela plataforma do Benfeitoria para levantar R$ 150 mil, que tem duração até o próximo sábado (11). Ainda há tempo de doar: www.benfeitoria.com/caravanasemiaridocontrafome

E, depois de tudo isso, o povo da Caravana volta aos seus cantos de origem como bem disse o paraibano Emmanoel: “Com as bênçãos das "nossas Senhoras", de Padim Cícero, dos orixás e outras forças da Caatinga, retornamos para fofocar com o povo do Nordeste o que foi esta viagem longa”.