V ENAE
14.02.2019 CE
Intercâmbios inesquecíveis em um Semiárido abundante de conhecimentos

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Por Comunicadores/as populares da ASA*

Na comunidade Chico Gomes, no Crato, um encontro histórico | Foto: Francisco Jefferson/Arquivo ASA

No segundo dia do V Encontro de Agricultoras e Agricultores Experimentadores (13), os participantes se dividiram em dez grupos e, logo de manhã cedo, cruzaram as fronteiras de Juazeiro do Norte em direção a diversas experiências de famílias agricultoras e de comunidades em municípios vizinhos. Percorreram de 10 a 100 km que as separavam das histórias de convivência com o Semiárido e se encontraram com outras famílias e comunidades, com seus conhecimentos e diferentes estratégias que os mantém no campo, vivendo da agricultura, nutrindo suas tradições culturais, respeitando a natureza e se relacionando com o divino. Como em todo o Semiárido, nesta parte da Chapada do Araripe, no lado cearense, as histórias são múltiplas, complexas e extremamente abundantes. Abaixo, contamos um pouco como estes encontros aconteceram...


O saber e a cultura que curam

“Sabedoria é capim que cheira sempre a ciência; no canteiro verde da alma nasceu o meu alecrim”. Foi ao som desta e de outras cantigas e de uma roda de benção que a comunidade Chico Gomes (foto acima), no Crato, recebeu o grupo com cerca de 15 agricultoras e agricultores experimentadores. A acolhida foi feita pelas meizinheiras Maria da Penha e Maria Jurai (Dona Iraci) e pelo grupo cultural “Arte vida Urucongo”.

No recém-construído espaço de saúde, localizado no sopé da chapada do Araripe, foram sendo costuradas as histórias da comunidade, do Grupo e das meizinheiras. Nada está desconecto. Ora o Urucongo fortalece as meizinheiras, ora as meizinheiras inspiram o Urucongo.

Encantados pela mística do lugar e pela experiência partilhada, as agricultoras e os agricultores visitantes trocaram saberes e rememoraram as curandeiras e benzedeiras das suas comunidades. Relataram histórias de cura através das plantas e da fé e compartilharam o poder de cada erva. “Malva-do-reino é mais cicatrizante do que o mastruz”, disse Dona Iraci. “Eu curei uma hérnia com uma planta chamada bom-nome”, confidenciou o guardião de sementes, Sebastião Damasceno, que veio de Alagoas. E assim a conversa foi se desenrolando, e como é comum nos terreiros e quintais do Semiárido os saberes foram sendo acolhidos e anotados para serem repassados.


Riqueza, diversidade e empreendedorismo no pé da Chapada do Araripe


Visita as experiências agroecológicas de Ronaldo e Edna | Foto: Fernanda Cruz

Apesar dos 20 km de viagem, o trecho até chegar no destino final, no pé da Chapada do Araripe, era difícil de ser percorrido de ônibus e forçou uma caminhada de 2km num chão ora de pedra, enladeirado; ora de areia fofa, para chegar até a propriedade de Ronaldo Gois, em Bebida Nova, a primeira parada do grupo.

Ao se depararem com a beleza e a imensidão da área dele, não teve cansaço certo. “Nossa! Valeu muito a pena! A gente sempre aprende muito nesses encontros”, disse Gerlane Romão, de Flores (PE). Ela foi uma das pessoas que saiu da propriedade com uma muda de batata yacon, uma novidade para os visitantes. Segundo Ronaldo, essa variedade é excelente para diabéticos, além de muito saborosa.

Nos quase 20 hectares de área, ele também cultiva araçá, sapoti, mamão, maracujá do pará, amora, azeitona roxa, diversos tipos de laranja e limão e tem desenvolvido uma experiência com o cultivo de maçãs. Além disso ele tem uma horta onde produz tomates, folhas, entre outras; uma área de agrofloresta e outra de mata nativa intocada.

Em seguida, o grupo conheceu a experiência de Cícera Edna, da comunidade Coruja, voltada para o beneficiamento e comercialização de bolos, sequilhos e peta.


“Nós temos que nos adaptar a elas e não elas nós”


Em direção à comunidade Zabelê, na zona rural de Nova Olinda, partiu um grupo de 16 mulheres e 7 homens, com pelo menos um/a representante de cada estado do Semiárido. O anfitrião Francisco Santos se tornou, há cerca de 10 anos, criador de abelhas sem ferrão de três espécies nativas da Chapada do Araripe. Ele vem de uma família e de uma comunidade com tradição no plantio e beneficiamento da mandioca, uma atividade ainda central na economia familiar deles. A criação de abelha sem ferrão, na área de reserva ambiental na sua propriedade, é mais uma prática agrícola que cativou Francisco, que também cria, em menor quantidade, as abelhas italianas, com ferrão e produtos muito mais conhecido pelo mercado consumidor.

Visita à experiência da família de Fabiana e Francisco no Semiárido Cearense | Foto: Beatriz Brasil

O interesse dos visitantes pela criação dos meliponíneos tinha um toque de curiosidade, uma vez que a criação destas espécies era desconhecida pela maioria. Muitas perguntas também se direcionavam à fabricação dos produtos da mandioca e ao valor da produção do mel e demais produtos das espécies italianas e também das sem ferrão. Depois de conversar na casa de farinha construída por Francisco, o grupo o seguiu até a área onde estão as colmeias das abelhas sem ferrão. Lá, ele mostrou e contou com mais detalhes como faz o manejo e como foi aperfeiçoando a prática a partir de sua própria observação e experimentação.
E nesse contato com as abelhas, Francisco desenvolveu ainda mais o senso de que não somos maiores do que a natureza e não nos cabe dominá-la e, se referindo a estes pequenos insetos de grande poder polinizador da flora da Chapada do Araripe, pontuou para os presentes: “Nós temos que nos adaptar a elas e não elas nós”.


Discurso de Resistência e Maracatu marcam visita ao Sítio Belo Horizonte

Visita à Associação Comunitária do Sítio Belo Horizonte | Foto: Aline Moura

A alegria e a resistência da comunidade do Sítio Belo Horizonte foi o que mais encantou os visitantes que ali chegaram vindos dos 10 estados do Semiárido brasileiro. Recepcionados ao som do maracatu do Coletivo Carrapato Cultural, os visitantes se empolgaram com as discussões políticas promovidas em roda pelos anfitriões. “Não existe cultura sem agricultura. Sem colocar as mãos na terra”, afirmou Ronaldo Pedro da Silva, presidente da associação comunitária.

A cultura e a comunicação popular são elementos fundamentais no Sítio Belo Horizonte, onde, em cada poste de iluminação, encontra-se também uma caixa de som, que repercute a Rádio Literária Carrapato. Inclusive, a roda de conversa entre visitantes e anfitriões foi veiculada simultaneamente para toda a comunidade, ampliando ainda mais o alcance e o impacto do momento. A conversa abordou a atual conjuntura política, o combate ao racismo, machismo e LGBTfobia, e o êxodo rural, principalmente, entre os jovens. Para Regilane Alves, jovem do Assentamento Maceió, em Itapipoca, também no Ceará, a juventude anseia por políticas que vão além da subsistência em si, também dando espaço para lazer e cultura.

A história de resistência da comunidade, que vive cada vez mais encurralada pela especulação imobiliária, impressionou os convidados. Durante a caminhada pelo território, foi possível avistar os loteamentos ao redor, que, conforme Ronaldo, ameaçam o ecossistema local. “Foi um encontro muito rico. O acolhimento foi ótimo. Vocês mostram muita força”, avaliou a agricultora Mara Domingues ao fim da visita.


“Meu maior orgulho é dizer que sou agricultora”


Visita ao Quintal Produtivo de Damiana e Abílio

Com o desejo de partilhar experiências e sentimentos, a família de Damiana e Valdomiro, conhecido como Bibi, recebeu no Sítio Lírio, município de Santana do Cariri, cravado na Serra do Araripe, 18 visitantes. No diálogo, diversos assuntos como economia solidária. Lá, eles têm um clube de trocas de objetos e uma moeda própria, o Lírio. Nos eventos promovidos pela associação, a moeda em circulação é o Lírio. “Muita gente já veio para a comunidade e levou essa ideia. A gente tem notícias de outros lugares que fizeram suas próprias moedas”, conta Bibi.

Outro destaque na roda de conversa foi a integração da família no sistema produtivo. Damiana e Bibi trabalham juntos durante a semana, comercializam os produtos na feira agroecológica do Crato na sexta feira e, no final de semana, o filho e as duas filhas contribuem nos afazeres. “Sou técnica agrícola e pedagoga, mas meu maior orgulho é dizer que sou agricultora e meus filhos tem o mesmo orgulho que eu”, diz Damiana e acrescenta: “Os intercâmbios nos ajudam muito. Essa relação de troca é muito cara para nós. Hoje, recebemos de vocês várias ideias e aprendemos muitas coisas, somos felizes por isso”.


Troca de experiências sobre recuperação de áreas degradadas


Visita ao sistema agroflorestal de Zé Artur e Bastinha | Foto: Josiane Rocha

Foi com muita alegria que José Raimundo de Matos (Zé Artur) e Sebastiana Luiza de Matos (Dona Bastinha) receberam os visitantes e apresentaram o trabalho de sistema agroflorestal que é feito na propriedade, há mais de 20 anos. O casal mora na comunidade Lagoa dos Patos, no município de Nova Olinda, e desenvolve um importante trabalho de recuperação de áreas degradadas.

Entre os visitantes, a agricultora Maria Aparecida Vieira Barros, de Alagoas: “Pra mim este momento está sendo muito importante. Na minha região a gente está iniciando um trabalho de reflorestamento e conhecer esta experiência só veio enriquecer o nosso conhecimento. O que eu vi aqui hoje, já estou pensando em fazer na minha propriedade”. A técnica em agropecuária Alciene Queiroz, vinda da Bahia, também deixou suas impressões: “Essa experiência é uma prova de que o sistema agroflorestal realmente funciona”.

 

No Assentamento 10 de Abril, partilhas sobre lutas pela terra e território

Visita ao Assentamento 10 de Abril | Foto: Miguel Cela

No Assentamento 10 de Abril, no Crato, os anfitriões compartilharam para os visitantes a história deles, que surge 54 anos depois do massacre do Caldeirão de Santa Cruz. As primeiras famílias que ocuparam a região se instalaram inicialmente neste lugar simbólico de resistência.

No encontro, o relato da luta e fundação do assentamento se desdobravam nas histórias das mulheres, que estiveram à frente nos momentos decisivos, e dos jovens que enraizados na localidade inventam caminhos para permanecer lá e dar continuidade ao assentamento.

Estimulados pelos relatos, os visitantes também partilharam suas experiências pessoais e coletivas. Ao mesmo tempo em que Mateus Tremembé, indígena do Povo Tremembé da Barra do Mundaú, em Itapipoca, no Ceará, falava sobre a luta de seu povo pelo território, ouvia-se: “Essa história é a mesma da nossa!”



Somos mulheres de vários jeitos, várias alegrias

Visita à experiência do grupo de coco formado por mulheres | Foto: João Marcos

Na comunidade Batateiras, região periférica da cidade do Crato, agricultoras e agricultores conheceram as experiências das mulheres meizinheiras, bonequeiras e fortalecedoras da dança do coco que resistem há mais de 40 anos na região do Cariri. Numa grande roda, alegria e muitas histórias não faltaram. Olhos curiosos e atentos ao que as mulheres do coco estavam partilhando e muito se foi vivenciado e cantado.

Versos da música Barra do Dia foram entoados pela Mestre do Coco Dona Edite, que disse ser a primeira música que pulsa das gargantas de todas as mulheres do coco em suas apresentações, simbolizando acolhimento e nascimento.

Barra do dia, ave do luar
eu vou subir a serra para te tirar maracujá
Lá vem a lua saindo
Redonda como botão
Com uma manta, ou morena
Quero ver do jeito que são

No encontro com outras tantas pessoas do Semiárido inteiro, cada uma das 18 mulheres que hoje compõem o grupo partilhou seus sonhos e conquistas de cantar e dançar com alegria sua arte. Elas também anunciaram o amor que elas sentem umas pelas outras.
Escutar as vozes das comunidades, reconhecer as experiências dessas mulheres mezinheiras, bonequeiras e dançarinas do coco pela conversa boa, música, dança é semear otimismo e vida no coração dos povos semiárido, fortalecendo e promovendo a cultura popular e a agroecologia.


Tradição que preserva a história de seu povo

Visita à experiência do grupo de coco Vassourinhas | Foto: Francisco Barbosa

O grupo que foi para a comunidade quilombola Vassourinhas, no município de Porteiras, conheceu um pouco da história da comunidade, sobre a arte da dança do coco e da mestra de cultura Maria José da Conceição, a famosa Maria de Tiê. Também foram visitados o terreiro de umbanda, a casa de farinha, o quintal produtivo do agricultor Luiz Augustinho dos Santos e de sua família, onde viram a cisterna de segunda água.

Para Maria de Tiê, a visita de hoje tem uma grande importância por ter reunido pessoas de diversos estados. E isso colabora com a divulgação das ações realizadas dentro da comunidade. "A gente receber esse pessoal aqui na nossa comunidade representa um prazer imenso. Eu sei que tenho meu nome na história da comunidade e é muito bom saber que tanto meu nome como o da comunidade vai ser levado para outros estados também. Espero que todos e todas que estão aqui hoje levem a nossa alegria, o meu prazer e a minha força que tenho de cantar, o orgulho do povo negro que está nessa comunidade e, claro, a nossa tradição".

A agricultora Ana Celma Góis, do assentamento São Jorge, no município de Porto da Folha, em Sergipe, que se considera um privilegiada por ter sido escolhida pra visitar essa região, disse que se surpreendeu ao chegar porque eu esperava ver as coisas secas. “Mas até que dei sorte porque parece que é um período chuvoso". E continua. "Foi muito gratificante ver que alimentam essa cultura, vivem essa cultura, trabalham essa cultura resgatando a sua história para os jovens e vivendo da agricultura familiar. Aquela agricultura tradicional. O legado que eu levo dessa comunidade é um legado de força, de coragem e de incentivo. Que a gente tem que correr atrás dos nossos objetivos".

Do carinho com a terra às tecnologias integradas

Visita à experiência agroecológica de Aguida e Abílio | Foto: Hugo de Lima

Da dedicação à terra às inovações para produzir alimentos e produtos com respeito à própria saúde e à natureza: essa é a base da história de Aguida e José Abílio, moradores da comunidade de Catolé, em Milagres, no Cariri Cearense. Seu sítio, que transpira o amor pela agricultura, é um canteiro de experimentos que vão desde o reuso da água que não só chega à horta em torno da casa, mas também à plantação de bananas, ao sistema de produção agroecológica integrado e sustentável (PAIS), que engloba várias técnicas interdependentes.

Rosalina, da comunidade de Pau Pereira, no município de Chorozinho, no Ceará, foi uma das integrantes do grupo que visitou a propriedade. “A cada planta que a gente vai vendo, a gente nota esse amor. E eu vi uma diferença muito grande [de onde eu venho] porque ele conserva todas as plantas, tanto a do viveiro quanto a nativa e isso é diferente. Não que a gente não cuide da nossa terra, mas eles conseguiram preservar.”

As visitas de intercâmbio são rotineiras e constroem oportunidades de trocas de conhecimento que só enriquecem as ideias implantadas (e inventadas!) pelo casal. “Eu me sinto lisonjeada das pessoas terem essa curiosidade de conhecer aqui o nosso lugar. A gente conhece pessoas novas, de diferentes lugares e também alguns conhecimentos que eles sempre traz pra gente – porque a gente sempre tem o que aprender, né!?”

“O que me chamou atenção foi o conjunto todo, o sistema no qual cada tecnologia depende da outra. Eu vejo, por exemplo, que aqui se tem a cisterna de beber, a de enxurrada, a barragem subterrânea, a agroflorestal, que é muito importante, e também a questão do reuso da água. Por exemplo, da forma que o reuso da água está colocada aqui, ela tem um apoio muito grande para a barragem, para as outras tecnologias.”, comenta José Maria Saraiva, técnico do Cerac, organização integrante do Fórum Piauiense de Convivência com o Semiárido.


* Kátia Rejane de Holanda, Josiane Rocha, Aline Moura, Francisco Barbosa, João Caetano, Miguel Cela, Elka Macedo, Fernanda Cruz, Verônica Pragana e Hugo de Lima

Edição: Verônica Pragana