Mãe-terra
11.04.2019
“O que posso fazer é cuidar do meu pedaço de chão”
Na contramão da motosserra do Governo, agricultores/as resistem por meio da agroecologia

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Por Elka Macêdo - Asacom

A agrofloresta da família Lermen fica na cidade de Exu, no semiárido de Pernambuco | Foto: Elka Macedo/arquivo Caatinga

“Minha relação com o solo é como se fosse algo mais forte… uma missão. A relação é de filho e mãe. A mãe-terra que é mãe de tudo e de todos; a terra que nos alimenta e nos dá tudo. O que posso fazer é cuidar do meu pedaço de chão, mesmo que seja pequeno. Eu não posso mudar o mundo, mas posso mudar o meu espaço”. O sentimento de pertencimento e de cuidado que o agricultor agroflorestal, Tone Cristiano, tem para com a terra é o que alimenta as esperanças no país que mais desmata e extingue espécies ameaçadas e que possui 50 milhões de hectares de terras degradadas, subutilizadas ou abandonadas pelo agronegócio, segundo informações do Observatório do Clima.

Não bastasse, os dados sobre os índices recordes de desmatamento, o Brasil amarga as consequências das medidas antiambientalistas do atual governo. No dia 11 de fevereiro deste ano, no 42º dia de mandato de Jair Bolsonaro, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) publicou a autorização de 57 novos produtos elaborados com agrotóxicos, 12 deles com substâncias altamente tóxicas. Na matéria da Agência Pública, os tóxicos citados são o Imazetapir e o Hexazinona, que tiveram a comercialização reprovada na União Europeia por serem considerados muito tóxicos; bem como o glifosato. Estas substâncias são danosos à saúde humana e ao meio ambiente. Um dos problemas mais comuns é a contaminação do solo, de lençóis freáticos e de rios e lagos.

Esta foi apenas uma das tantas decisões perversas tomadas nestes 100 primeiros dias de governo, que comprometem os solos, as águas e a biodiversidade brasileira. Na gestão do Ministro Ricardo Salles, a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas foi extinta, houve a exoneração coletiva de 21 dos 27 superintendentes regionais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama); além do congelamento da aplicação de R$ 1 bilhão, oriundo de multas aplicadas pelo Ibama, que seriam utilizados em 34 projetos de recuperação das bacias do Rio São Francisco e do Rio Parnaíba.

Todas estas medidas corroboram para que haja um processo acelerado de degradação do solo que passa a não ter reposição de matéria orgânica e perde seu caráter produtivo como afirma a Doutora em Cultura de Solos e Nutrição Vegetal, Ana Primavesi, em seu artigo Agroecologia e manejo do solo, publicado em setembro de 2008 na revista Agriculturas. “Com a redução dos teores de matéria orgânica do solo, a maior parte da vida microbiana não sobrevive, pois fica sem alimento. Sem a ação da matéria orgânica e dos microrganismos, o solo desagrega, compacta e endurece. Assim, sua capacidade de produção fica cada vez mais dependente do pacote químico da agricultura convencional”, afirma Primavesi.

É essa agricultura chamada convencional, com seus sistemas baseados na produção em larga escala seja de vegetais ou de animais, que é uma das principais vilãs no processo de empobrecimento dos solos. E é para este modelo que estão destinados 245 milhões de hectares de terras brasileiras, enquanto que as áreas de preservação não ultrapassam os 216 milhões de hectares.

Desde pequeno, Pedro (à dir.) aprendeu a cuidar da terra. Na foto de arquivo está seu pais, Vilmar Lermen (esq); o irmão, Jefferson (no meio) e ele | Foto: Vládia Lima/arquivo DICASA

“Hoje tem muita pouca floresta e está sendo cada vez mais degrada, sendo queimadas e derrubadas para construção de imóveis. Hoje as indústrias estão muito focadas no dinheiro e só querem saber de colher e não quer saber do futuro o que vai ter para colher de novo porque se fosse auto sustentável, o que se plantou lá atrás poderia estar grande pra colher novamente. O problema não é derrubar, é derrubar e não plantar. Sempre que você corta tem que plantar em dobro. Corta uma, planta duas”, aconselha o jovem agricultor agroflorestal, Pedro Lermen, que aos 15 anos trabalha este processo de consciência ambiental dentro e fora do Sistema Agroflorestal (SAF) de sua família que está situado na Serra dos Paus Dóias, no município de Exu (PE).

Já Tone Cristiano, que mantém um SAF junto com a família no município pernambucano de Bom Jardim, explicita que a devastação do meio ambiente tem relação com a forma como as pessoas utilizam os recursos naturais. “Eu sempre escutei que a praga que existe na terra é o ser humano. Quem está matando a terra somos nós. O modelo capitalista que só visa a exploração e acha que os recursos naturais são infinitos e que nunca vai acabar. Há também uma completa omissão dos órgãos públicos e agentes de fiscalização e isso tem acabado com o solo. O triste é ver que além das grandes empresas, existem pequenos agricultores destruindo o meio ambiente porque acham que só vão conseguir ter um modelo de agricultura bom se ver o seu sistema parecendo com aqueles que ele vê nos programas rurais que passa na grande mídia”, denuncia.

No Observatório do Clima, a animação “será que o Brasil encolheu?” mostra de forma didática que o país “tem espaço de sobra para proteger o clima, conservar a diversidade e as comunidades, e ainda se tornar o maior produtor de alimentos, fibras e bioenergia do mundo. Basta ampliarmos as técnicas de produtividade em todo país para expandir a atual produção de alimentos sem nenhum desmatamento. Pra isso, precisamos apenas usar nosso território com inteligência”.

Umas destas formas é o cultivo agroecológico que vem sendo adotado por milhares de famílias camponesas e tem contribuído com a garantia de produção de alimentos saudáveis e com a conservação da vida no planeta. É o que Primavesi enfatiza em um dos trechos do seu artigo: “na Agroecologia, o agricultor deixa de perguntar ‘O que faço?’ e passa a questionar ‘Por que ocorre?’. Simplesmente ao reorientar o tipo de pergunta diante de um problema técnico em seus cultivos, ele muda a sua atitude em relação à forma de praticar a agricultura. Em vez de receber receitas técnicas prontas, passa a observar, pensar e experimentar. Com o tempo ele começa a produzir melhor que a agricultura convencional e ganha autoconfiança. E é assim que ele se dá conta de que é produtor de alimentos junto com a natureza que Deus criou, que respeita as leis eternas e que acredita em si mesmo”.

A agricultora Aparecida da Siva, conhecida por Cida, que mora no sítio Lagoa da Volta, no município de Porto da Folha, Semiárido sergipano, explica o significado da agroecologia para a sua vida. “Eu vim aprender a cuidar da mãe-terra há uns 20 anos, antes eu usava queimada. Depois que eu fui aprendendo a agroecologia e fui cuidando melhor, não usei mais queimada. É muito importante ser agroecológico porque agroecologia é um todo e quando você vai pegando sabor, experimentando e vendo como é… você não vai querer mais fazer queimada, nem esses produtos químicos e você vê que a mãe fica viva, saudável. É o mesmo que você tá cuidando de uma pessoa com anemia, aí vai dar remédio pra ela. Então, a gente cuida da terra dando a ela mesma o que ela produz”.

Olhar para estes povos, compreender a importância do seu papel e valorizar o seu trabalho é um primeiro passo para garantir que a relação entre natureza e seres humanos seja harmoniosa. “Ser agricultor é trabalhar com a arte da vida. Um agricultor acorda todos os dias com a responsabilidade de alimentar as outras pessoas. É uma responsabilidade enorme, não tem dimensão. Ser agricultor é ter essa missão de entender que se você não plantar alguém não vai comer”, finaliza Tone.

É no cotidiano das práticas agroecológicas adotadas dentro do Sistema Agroflorestal da família Lermen, e de outras milhares de famílias agricultoras que se vê na prática como o respeito aos ciclos da natureza e a produção com respeito ao meio ambiente tem gerado dignidade, saúde e renda no campo, além de ser fundamental para a vitalidade do solo. A agricultora agroflorestal, Silvanete Lermen, mãe de Pedro, fala como a agroecologia colabora para a saúde do solo e manutenção da vida.

“Trabalhar a agroecologia traz todos os elementos, terra, solo e água, de forma bem mais completa como um corpo só. Nós enquanto família entendemos a terra como mais que todos estes elementos, ela também é gente, ela também é povo. Trabalhar a questão da terra é perceber que fazemos parte de um único corpo e que se ela adoece, a gente também adoece, o que ela sente nós também vamos sentir. Se ela ficar anêmica, nós também vamos ficar anêmicos é dali de onde vem o alimento, é dali de onde vem a água; é dali de onde vem o sustento do nosso corpo. E se ela está bem, também estaremos bem. Quando passamos a olhar a terra com este olhar, entendemos que é um trabalho não só de um indivíduo, mas ela passa a ser um trabalho de diversos sujeitos que precisam ter a mesma compreensão, o mesmo pensamento e prática”, afirma Silvanete.

Ela complementa: “Aqui em casa nós percebemos a necessidade do envolvimento não só do homem não só da mulher, não só do pai ou da mãe, mas de todos que compõem a família e também das pessoas que vem visitar o nosso aconchego para estarmos na mesma conexão. É preciso compreender o que é uma semente por exemplo, e o que ela representará no nosso futuro. É como olhar para Débora, nossa filha mais nova, e como eu vejo ela no futuro. É um projeto! E eu projeto a minha família da melhor forma possível. Então tu olhar a semente é a mesma coisa. Quando eu desenvolvo este olhar de cuidado com a Débora e passo a praticar isso no meu dia a dia com a terra ela vai sentir e fazer a mesma coisa”, exemplifica.