Semiárido
15.06.2016
É preciso “vestir” a terra para evitar a desertificação

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Por Hugo de Lima - ASACom

Seu Carlinhos, no Alto Sertão Sergipano, mostra sua propriedade em intercâmbio com outros agricultores. | Foto: Hugo de Lima / ASACom

Perguntado sobre o que significava uma terra bonita, Seu Carlinhos respondeu sem pestanejar: “uma terra vestida”. A fala do agricultor Carlos Soares de Menezes, do Alto Sertão Sergipano não tem nada de simples. É carregada de uma complexidade de significados pautados nas experiências de 23 anos de trabalho com a terra, a partir da adoção de práticas agroecológicas. Terra vestida é terra coberta de vida vegetal e animal, de biodiversidade ampla. A resposta de Seu Carlinhos é, sobretudo, uma resposta à desertificação.

A desertificação é resultado de uma série de características de desigualdade social – e pode agravá-las. A degradação dos solos acontece principalmente depois do desmatamento e da perda da biodiversidade de grandes áreas que possuíam equilíbrios sustentáveis. Ao mesmo tempo que o empobrecimento dos solos ocorre, a exploração do homem e da mulher do campo se eleva em torno da concentração de terra para um uso extensivo de monoculturas regadas com agrotóxicos. Neste contexto, quanto maior for o número de solos em processo de desertificação, menor será a capacidade de garantir segurança alimentar das populações urbanas e rurais, principalmente as mais pobres. A Organização das Nações Unidas – ONU declarou, em 1994, a data de 17 de junho como o Dia Mundial de Combate à Desertificação e à Seca. O objetivo desse marco anual é o de promover a conscientização das pessoas em relação ao problema. É parte de um conjunto programático da Convenção para o Combate à Desertificação (UNCCD, em inglês), criada no mesmo ano, após intensos debates no evento global Cúpula da Terra, Rio-92.

Processo de desertificação em Floresta, no Semiárido pernambucano. | Foto: Bruno Morais / Arquivo ASACom

Nos últimos anos, os processos de desertificação se tornaram mais rápidos. No Semiárido brasileiro, por exemplo, grande parte do bioma caatinga foi destruído para dar lugar a latifúndios do agronegócio e pólos fabris. No Estado de Alagoas, cerca de 62% dos municípios enfrentam processos de desertificação, segundo a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Semarh). No Brasil, além do Semiárido, os pampas gaúchos, o cerrado do Tocantins e o norte do Mato Grosso são áreas atualmente ameaçadas pela desertificação. Embora seja também um resultado de mudanças climáticas naturais, a incidência está maior em regiões de expansão da agricultura e da pecuária industriais, por meio da degradação humana.

 

O exemplo de Monte Alegre de Sergipe

A “terra vestida” que Seu Carlinhos aponta como terra bonita é a certeza de que sem a convivência harmoniosa com os ecossistemas em nossa volta, não é possível garantir vida por muito tempo. Vestir a terra é também mudar de pensamento e ter a humildade de reconhecer isso. “Olhar a terra pra o que ela foi e o que ela é hoje, é olhar pra o que eu era e o que eu sou hoje”, relata o agricultor. “A terra e eu somos seres vivos. E a terra degradada certamente não vai dar nada. Quando você começa a entender o que é natureza, você muda muito. Você olhar pra terra é você olhar pra vida”, acrescenta.

Seu Carlinhos tem orgulho de ver seu manejo como exemplo para outros agricultores e agricultoras. No início de junho, suas terras foram visitadas durante intercâmbio previsto na programação do IV Encontro Nacional de Agricultoras e Agricultores Experimentadores, evento realizado pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), em Aracaju, no estado de Sergipe.

O agricultor também é guardião de sementes e mantém em sua casa um acervo com muitas variedades do que nomeou como “Sementes da Liberdade”, mais tarde largamente adotado por quem se refere às sementes crioulas no estado de Sergipe. A preservação da caatinga e a conservação e o armazenamento de sementes, aliados a um vasto conhecimento medicinal (popular) e de cada detalhe de sua terra, tornaram-se as grandes contribuições de Seu Carlinhos no combate à desertificação na comunidade de Lagoa de Areias, município de Monte Alegre de Sergipe.

Ele fala com carinho de como suas terras oferecem brisa fresca dentro de uma região conhecida por sua quentura. Segundo o agricultor, por causa da vegetação, do “mato” preservado. “É melhor que ventilador”, brinca Seu Carlinhos. Quando chegou na atual propriedade, a situação era de degradação. Poucas eram as árvores (algumas centenárias) e o solo sofria com a pouca diversidade. “Praticamente, só tinha velame [*arbusto típico da caatinga]”. Com os anos, foram integradas diversas espécies e a riqueza do solo, principalmente com insetos e pequenos bichos, passou a ser presente.

Shaiene Alves, José Francisco e outros agricultores em visita à experiência agroecológica em Monte Alegre de Sergipe. | Foto: Hugo de Lima / ASACom

José Francisco da Cruz, agricultor experimentador de Janaúba, norte de Minas Gerais, foi um dos que visitou a experiência durante o encontro. Ele avalia que "participar dessa experiência como a de Seu Carlinhos enriquece na vida da gente uma quantidade [de conhecimento] que a gente não sabe avaliar o quanto. Uma vez que a gente mora no mato, e eu sou nascido no mato, vejo e levo pra casa o valor de uma pessoa que nos ensina o quanto é bom preservar o meio ambiente. E aqui ele criou o meio ambiente."

A jovem Shaiene Alves, moradora do Vale do Jequitinhonha, também em Minas Gerais, e outra visitante da experiência em Monte Alegre, viu como “maravilhosa” a forma como Seu Carlinhos trata a natureza. “Ele se refere à Natureza como a mãe... são coisas que às vezes passam despercebidas no nosso mundo... e ele fala com tanta propriedade de ser a nossa mãe realmente, que a gente acaba tomando aquele amor dele pra gente. ”

As abelhas que não polinizam mais como antes...

Seu Carlinhos mantém uma criação de abelhas em sua propriedade. O agricultor já teve produções de 600 quilos de mel por ano, mas ele conta que a criação está diminuindo por causa dos venenos. E esse não é um problema só dele. No mundo todo, as populações de abelhas, fundamentais na polinização das florestas e na manutenção da vida natural, está diminuindo drasticamente por causa do contato com defensivos químicos e tóxicos. Esses venenos formam nuvens que desorientam o voo das polinizadoras, impedindo que elas retornem às colmeias. O prejuízo é imenso. Sem concluir a cadeia alimentar, as quantidades de abelhas diminuem até a extinção do grupo. Encadeada, essa etapa impacta diretamente na renovação das plantas, causando desflorestamento e, por conseguinte, desertificação. A Bayer, empresa multinacional alemã e gigante no setor de químicos agrícolas, é responsável pela produção dos agrotóxicos que interferem no ciclo de vida das abelhas.

Nada disso, no entanto, desanima Seu Carlinhos, que ainda tem muita força de vontade para cuidar de suas terras. “Daqui a dez anos, tenho fé em Deus, isso aqui vai tá mais bonito. Eu quero motivar, eu quero mostrar que dá certo”.

Terra "vestida" pelos sistemas agroecológicos

O solo, em um manejo agroecológico, tem cobertura rica fornecida pelo próprio sistema. | Foto: Hugo de Lima / ASACom

O termo agroecologia não é uma novidade. Desde a década de 1920, está presente na literatura científica - e ele se refere a um conjunto (e um resgate) de técnicas do saber dos povos agricultores. A agroecologia é uma forma de vida baseada no uso ecológico dos solos, da água e da criação de animais. É um conjunto rico de práticas populares e científicas que visa o manejo mais justo socialmente, desde a saúde do agricultor e da agricultora, a preservação das espécies vegetais e animais nativas, à segurança alimentar. É uma ciência e um posicionamento político, que entende o ambiente do campo e das florestas como um sistema de organicidade complexa e interdependente.

Nesse modelo de produção, os químicos agrícolas são deixados de lado para que defensivos naturais (e que não agridem o meio) sejam utilizados. É uma alternativa para a conservação das terras férteis e a segurança alimentar do mundo. Na contramão dessa proposta, o agronegócio, que é o modelo de produção agrícola mais incentivado por políticas públicas e financiamentos no Brasil, principalmente depois dos anos 1960, torna os sistemas cada vez mais dependentes de venenos, com impacto na saúde dos trabalhadores e do meio, desestruturando recursos naturais e humanos e levando à desertificação e à pobreza.