Nenhum Direito A Menos
24.08.2016
Mulheres unidas não se calam diante de um governo machista

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Por Gleiceani Nogueira - ASACom

Marcha das Margaridas tem como característica a proposição e o diálogo político. Foto: Arquivo ASACom

SÉRIE NENHUM DIREITO A MENOS | Maria Aparecida da Silva (Cida Silva) é agricultora, mãe de cinco filhos, e secretária de Política Agrícola e Meio Ambiente do Sindicato de Porta da Folha, em Sergipe. É também integrante de uma associação de mulheres que tem o objetivo de produzir alimentos saudáveis. A cerca de 500 km de Porto da Folha, no município de Queimadas, na Paraíba, a agricultora Angeneide Pereira de Macedo também desenvolve um trabalho com mulheres, mais especificamente com quintais produtivos. Ela também é diretora do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais e teve cinco filhos.

Em vários cantos do país, de norte a sul, no campo e na cidade, existem mulheres como Cida e Angeneide que desempenham diversas funções e que estão unidas na luta contra as desigualdades de gênero. Para muitas delas, o trabalho com outras mulheres em seus mais variados formatos seja no âmbito local, estadual ou nacional tem sido catalisador de mudanças que vão desde uma maior consciência sobre o seu papel de mulher como sujeito político até o enfrentamento e a superação da violência, que é um problema grave do país.

 “O trabalho da associação é ótimo, o companheirismo, o coletivo sempre é bom. E mudou muito a vida das mulheres. Eu acho que o empoderamento é o principal. Antes não tinha isso. A mulher era mais na cozinha, não sabia quais eram os seus direitos, nem reivindicar os seus direitos”, relata Cida. A associação surgiu com o objetivo de promover a segurança alimentar na região devido ao alto índice de desnutrição que atingia as famílias. Mas é também um espaço onde as mulheres discutem seus direitos e debatem sobre as políticas públicas. Elas também têm a preocupação de passar para as outras mulheres da comunidade o conhecimento adquirido. 

Cida Silva diz que o trabalho na associação de mulheres gerou empoderamento| Foto: Daniela Bento

Com a venda dos produtos da sua horta e com o trabalho da associação, Cida sustenta a casa. O marido, que trabalhava de alugado [na propriedade de outra pessoa], hoje trabalha com ela na agricultura. “Eu digo às mulheres que saiam da cozinha e venham ocupar o [seu] lugar. Que se junte a outras. Onde tiver uma ou mais se reúna porque ali tem algo bom pra passar [...] Nós temos os mesmos direitos [dos homens] e somos iguais”. 

Na última semana, o governo provisório de Michel Temer completou 100 dias e nesse período houve um grande desmonte das políticas públicas. Ele iniciou seu mandato extinguindo ministérios estratégicos no campo da inclusão social, a exemplo do Ministério das Mulheres. “No governo interino não tem ninguém que nos represente. Não tem ninguém que represente nós mulheres, que represente os negros, que represente os índios. Lá só tem quem represente a burguesia e os grandes empresários”, afirma Cida.  

Vera Guedes, educadora do Centro Nordestino de Medicina Popular e militante da Articulação de Mulheres Brasileira (AMB), avalia que as medidas de Temer nos primeiros dias do governo interino deixa claro que a prioridade dele não é investir em políticas sociais. Ela destaca que há perspectivas de cortes mais profundos e que pautas em tramitação no Congresso, que atentam contra a vida das mulheres, vão ganhar força com a permanência dele na presidência. 

“Eu vou pegar, por exemplo, a questão do projeto do direito sexual e reprodutivo das mulheres. O governo Temer instalado, a bancada que defende aquele projeto, que a gente chama de Bolsa Estupro, com certeza vai ganhar força para ser votado. Então o governo interino não ameaça apenas os direitos de nós mulheres, mas ele ameaça os direitos humanos enquanto categoria maior”. 

Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) desde 2008, Natália Diógenes afirma que o processo de impeachment que culminou com o afastamento da presidenta Dilma representa um golpe contra a classe trabalhadora construído de forma arbitrária e com o apoio da grande mídia e, acima de tudo, é também um golpe patriarcal. “Ele [o impeachment] é um ataque à figura da mulher, a primeira mulher que chega a esse cargo de presidenta do Brasil, a partir de um contexto de extremas assimetrias de gênero porque o Brasil tem uma cultura machista extremamente profunda, fundante na nossa sociedade”.

Ela também destaca que foi nos governos de Lula e Dilma que as mulheres conquistaram mais direitos a partir da proliferação dos serviços e da composição de uma rede para a mulher pensando a prevenção, a punição dos agressores e agregou um olhar específico para as necessidades das mulheres em diversas políticas públicas, como na área de habitação, saúde e assistência social. Antes disso, Natália destaca que a principal conquista foi a criação das delegacias especializadas de atendimento à mulher, na década de 80.

“E agora a gente chega nesse governo golpista que começa a diluir de forma extremamente rápida o que a gente levou anos e anos para construir. É um ataque à classe trabalhadora, é um ataque à democracia brasileira, é um ataque à figura das mulheres na política e um ataque aos nossos direitos”, reforça. 

Leis de combate à violência 

Um dos instrumentos que mais garantiu visibilidade ao crime de violência contra a mulher é a lei Maria da Penha, que é fruto da luta do movimento feminista, e foi sancionada pelo ex-presidente Lula. Ela tem uma centralidade na prevenção, mas também avança em vários pontos, como na punição. Outra novidade que a lei traz é o reconhecimento às diversas tipologias da violência, que passa a ser entendida não apenas como violência física, mas também como a agressão moral, simbólica, psicológica e patrimonial.

Outra importante conquista é a Lei do Feminicídio sancionada pela presidenta Dilma, em 9 de março deste ano, que torna crime hediondo quem mata mulher pelo fato dela ser mulher. A lei altera o Código Penal para prever o feminicídio um tipo de homicídio qualificado e inclui-lo no rol dos crimes hediondos, que são considerados de extrema gravidade e recebem uma punição mais severa. Eles são inafiançáveis, não podem ter a pena reduzida. Quando o assassinato ocorre durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto, contra menores de 14 anos, maior de 60 anos ou pessoa com deficiência, e na presença de descendente ou ascendente da vítima, o tempo da pena aumenta em 1/3.

Natália conta que, desde que surgiu, a lei Maria da Penha vem sofrendo ataques sistemáticos no sentido de deslegitimar a sua importância para o enfrentamento do fenômeno da violência. “Algumas medidas começaram a ser tomadas de enfraquecimento da lei que pra gente é muito perigoso porque [a lei] não teve um tempo histórico pra ver os efeitos para a sociedade. Pouco depois que a lei foi promulgada se teve um aumento no índice de violência muito grande e se começou a culpar a lei por causa disso, mas na verdade é porque agora começaram a aparecer os casos”. 

Nesse sentido, merece toda atenção o Projeto de Lei da Câmara PLC- 07/2016 que prevê alterações na lei como transferir para as autoridades policiais a aplicação, de forma provisória, de medidas protetivas de urgência. Hoje, essa função fica a cargo dos magistrados. Essa proposta segue na mesma linha das medidas de redução da violência anunciadas pelo governo interino que propõe, por exemplo, a criação de um departamento de mulheres na Polícia Federal, o que demostra um total desconhecimento sobre as questões de violência de gênero.  

Os movimentos sociais lançaram um documento se posicionado contra essa e outras alterações na lei Maria da Penha. “A nossa percepção é que apesar dos problemas apontados no tocante à lentidão e mesmo à omissão do sistema judicial, não justifica repassar esta função para a autoridade policial. Nós, da MMM e da CUT, lutamos pela desmilitarização e acreditamos que a autoridade policial já possui mais atribuições em relação ao controle da vida que o necessário”, diz um trecho da carta. (Leia na integra aqui). 

Leis como a Maria da Penha e do Feminicídio são conquistas das mulheres no enfrentamento à violência | Foto: Thiago Ripper/ASACom

O índice de violência que atinge as mulheres no Brasil é altíssimo. Um balanço divulgado pela Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) revela que 38,72% das mulheres em situação de violência sofrem agressões diariamente e para 33,86% dos casos denunciados, a agressão é semanal. Com relação à violência sexual, em 2014, foram registrados 47.643 casos de estupro em todo o país. O dado representa um estupro a cada 11 minutos. Os dados são do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, assinado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e lançado em 2015.  

Um caso marcante de violência sexual que ganhou repercussão no estado da Paraíba foi o caso de Ana Alice, filha de Angeneide que foi violentada e assassinada há quatro anos na zona rural de Queimadas. Foi a partir da solidariedade que recebeu e continua recebendo das mulheres e do Polo da Borborema, um fórum de sindicatos e entidades da agricultura familiar, onde também é militante, que a agricultora vem conseguindo forças para seguir na vida.

O caso de Ana Alice só conseguiu ser desvendando e o agressor punido após um movimento de grande pressão envolvendo diversas entidades que formaram o Comitê de Solidariedade Ana Alice. O assassino foi a júri popular e condenado por 34 anos de reclusão no dia 18 de agosto de 2015. Além disso, devido à mobilização, foi criada uma delegacia que funciona 24 horas. Na época que Angeneide prestou queixa sobre o desaparecimento da filha, o órgão funcionava numa garagem e sem nenhuma estrutura para atendimento. 

O município de Queimadas já tinha presenciado outro caso bárbaro envolvendo duas mulheres vítimas de um estupro coletivo, que acabou também em morte. A Paraíba registrou 556 casos de estupros entre 2010 e 2015.  

Com o caso de Ana Alice, a questão da violência contra a mulher ganhou mais visibilidade na região e outras mulheres passaram a denunciar e a cobrar uma resposta da justiça, contribuindo também com a desnaturalização da violência.

Mobilizações - Toda essa transformação é resultado do trabalho de organização política e empoderamento das mulheres que o Polo da Borborema vem desenvolvendo na região. Há seis anos, o Polo e a AS-PTA organizam a Marcha pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia que representa um momento de denúncia e visibilidade das desigualdades de gênero. Este ano, a sexta edição da marcha levou às ruas de Areial cerca de 5 mil mulheres camponesas. 

No âmbito nacional ocorre também a Marcha das Margaridas que é reconhecida como a maior e mais efetiva ação das mulheres do campo e da floresta. Além da grande capacidade de mobilização, organização e denúncia, a Marcha das Margaridas tem como característica a proposição e o diálogo político. São conquistas importantes da Marcha, por exemplo, a titulação da terra em nome da mulher, o Projeto de Saúde Reprodutiva da Mulher e, mais recentemente, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO). A Marcha das Margaridas acontece desde 2000 e integra a agenda permanente do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (MSTTR) e de movimentos feministas e de mulheres. 

É essa força viva e pulsante por respeito, justiça e dignidade, que parte de cada mulher e que ganha mais força e impacto no coletivo, que tem permitido que as mulheres não se calem e não se intimidem diante de um sistema conservador e machista que oprime e ameaça suas vidas e seus direitos.