NENHUM DIREITO A MENOS
31.08.2016
A senha da sanha
A PEC 241 é o código para duas décadas com mais retrocessos

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Por Daniel Lamir - Asacom

#NenhumDireitoAMenos

SÉRIE NENHUM DIREITO A MENOS | O golpe que resultou no impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff não se contenta em atropelar apenas as urnas de 2014. Em apenas quatro meses no executivo, o governo antidemocrático corre contra o tempo para injetar décadas de mais concentração de renda, opressão de classes e desmonte do estado. O décimo golpe de Estado na história do Brasil República nutre os novos arranjos de Estado Mínimo com as velhas raízes de patrimonialismo. A concretização desta ideia está tramitando no Congresso Nacional com o título de Projeto de Emenda a Constituição (PEC) 241.

A engrenagem da PEC 241 acelera a corrida pelo modelo de desenvolvimento econômico que preserva cifras e destrói vidas. A autoria do Projeto é do governo Temer. A PEC 241 pretende congelar os gastos públicos nos programas sociais de todas as áreas até 2037. A manipulação golpista inverte lógicas no regime fiscal do país. Ao contrário de um piso baseado na arrecadação, será criado um teto com referência na inflação do país. Ou seja, os tentáculos golpistas tentam marcar pelo menos mais cinco processos eleitorais futuros.

 

O resultado das urnas não foi levado em consideração no processo de impeachment | Foto: Agnaldo Rocha 

Em outras palavras, a PEC 241 faz com que o orçamento do governo para as questões sociais tenham um “crescimento zero” nas próximas duas décadas. O congelamento pretende fazer vistas grossas a variáveis como crescimento populacional, mudanças etárias, além de novas estruturações públicas ou necessidades básicas da população. O aumento real seria apenas de perdas gradativas nos investimentos sociais. 

“A Constituição hoje fala em realização progressiva de direitos. Essa PEC [241] retira a possibilidade de realização progressiva. O que se conquistou até 2016 vai parar, e, dali em diante, não se cresce mais. Ao contrário, se a demanda social está aumentando, vamos regredir nos direitos”, avalia Grazielle David, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), autora do artigo "PEC 241 é uma bomba contra os direitos constitucionais da população brasileira".

A PEC 241 vai contra aspectos constitucionais. Porém, o cenário antidemocrático instalado no país pode favorecer a medida. É das duas casas legislativas que os rituais golpistas se distanciam cada vez mais da democracia. O Senado Federal, que fechou os trâmites imorais para o impedimento do mandato da presidenta eleita com mais 54 milhões de votos, deve apreciar a PEC 241 nos próximos dias. A população não teve voz na decisão de quebrar ou manter as mudanças sociais, realizadas nos últimos 12 anos, que melhoraram a distribuição de renda, tiraram milhões de pessoas da pobreza e consolidaram direitos. Apesar das várias críticas e contradições nas gestões de Lula e Dilma Rousseff, o eco das bandeiras de lutas e a participação social possibilitou uma mudança significativa no perfil social do país.

“A ameaça mais assustadora desse processo de impeachment sem crime de responsabilidade é congelar por inacreditáveis 20 anos todas as despesas com saúde, educação, saneamento, habitação. É impedir que, por 20 anos, mais crianças e jovens tenham acesso às escolas; que, por 20 anos, as pessoas possam ter melhor atendimento à saúde; que, por 20 anos, as famílias possam sonhar com casa própria”, relatou a presidenta eleita Dilma Rousseff, no dia 29 de agosto, no Senado.

A PEC 241 possui maquiagem. O discurso é dissimulado ao citar que não vai diminuir recursos para saúde e educação. As equações já mostram que para 2017 os gastos seriam menores. Na saúde, por exemplo, a estimativa seria de 4 bilhões a menos. Ou ainda, se a medida fosse utilizada desde 2003, teríamos uma perda acumulada de 318 bilhões até o momento, só para citar a saúde. Ainda assim, mesmo que se “proteja” saúde e educação, como insiste o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, outros direitos sociais seriam praticamente extintos. Isso sem levantar a necessária interdependência dos direitos.

Grazielle David é assessora política e trabalha com os temas de análise orçamentária e justiça fiscal no INESC | Foto: Arquivo INESC

Sem maquiagem, é possível perceber que, mesmo que a economia do país cresça, a base de cálculo dos gastos sociais do governo passa a ser o ano de 2016, período em que a crise financeira gerou baixa arrecadação. A variação vai depender apenas do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Nesta ideia, os valores anuais destinados aos programas sociais seriam os mesmos de 2016, apenas "corrigidos" monetariamente.   

Influenciando os gastos sociais, a PEC 241 dá sinal verde aos investidores. O caminho é direcionar os recursos no pagamento de juros e amortização da dívida externa: "até então vinha se falando que as taxas de juros deveriam permanecer altas por causa da inflação, para evitar que a inflação crescesse. Mas nesse último período tivemos uma queda da inflação. Então, consequentemente, deveria ter uma queda de juros. O que não ocorreu", avalia Grazielle David, que lembra ainda que temas como combate à sonegação, a cobrança da dívida ativa e o fim de desonerações tributárias seriam caminhos viáveis para equilibrar a receita do país. 

Por outro lado, os dados que indicam a saída do Brasil do Mapa da Fome, em 2014, não são apenas “números ao vento”. A referência da Organização das Nações Unidas (ONU) aponta que as políticas governamentais, desde 2003, foram essenciais para mudar a situação da pobreza no país. Toda a trajetória de décadas de luta pela democracia, que inclui a obrigação governamental nas políticas de direitos sociais, está sendo esmagada. Assim como em Honduras e no Paraguai, o Brasil entra numa nova onda de golpes na América Latina. O Estado de Exceção está virando regra; a democracia uma “exceção”.

Pautas sociais estão em xeque. Foto: J.R. Ripper

 

Os golpistas de hoje têm a mesma intenção dos golpistas do passado. Além de cortar direitos sociais, orquestram explorar ainda mais a mão de obra da classe trabalhadora. Se há negação ao golpe consolidado nesta quarta-feira (31), há também lembrança de alguns que ainda hoje teimam em falar de heroísmo numa “Revolução de 64”. As reformas de base anunciadas por João Goulart também pautavam transferência de renda e inclusão social. Se na época a reforma agrária era uma forte promessa, a consolidação e estruturação para erradicação da pobreza nos dias de hoje exigiria o esforço de um passo a mais no olhar do direito à terra.

O ambiente exige resistências e reinvenções. O conservadorismo repetiu o velho argumento de combate à corrupção e a “piada” ainda colou. Dilma Rousseff não cometeu crime e foi destituída do mandato por várias pessoas acusadas de corrupção. A crise financeira é o mote para mais dissimulações como a própria PEC 241 na disputa pela concentração desigual de renda.

“Meu fio de esperança se prende aos movimentos sociais. Não são perfeitos. Neles também há oportunistas e corruptos. Mas estes são exceções. Porque a base da maioria dos movimentos é a gente pobre que luta com dificuldade para sobreviver. Essa gente costuma ser visceralmente ética. Não acumula, partilha. Não se entrega, resiste. Não se deixa derrotar, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”, opina Frei Betto, no artigo “Meu Fio de Esperança”.
 

Semiárido

Na lógica da PEC 241, a complexidade e diversidade cultural e ambiental, além das variáveis climáticas, nos gastos sociais de governo estariam espremidas, nos mais otimistas prognósticos. Ou ainda, os processos de desenvolvimento sustentável e autonomia camponesa, presentes na perspectiva da Convivência com o Semiárido, ficariam cada vez mais ameaçados pelos velhos fantasmas da Indústria da Seca.

A base deste retrocesso no Semiárido já está presente nas retóricas e nas práticas do governo atual. Os discursos da velha proposta de “combate à seca” estão cada vez mais entranhados nas novas pastas governamentais. No último dia 18 de agosto, Temer transferiu ao PMDB os chamados recursos “contra a seca no Nordeste”.