Políticas Públicas
27.10.2016
Quem sobrevive com a PEC “do Fim do Mundo”?
Aprovação da Câmara Federal coloca contagem regressiva para ameaça aos direitos sociais

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Por Daniel Lamir - Asacom

Jantar do dia 09 de outubro contou com vinho, carne com risoto funghi, salmão, massa e salada para mais de 200 parlamentares | Foto: Beto Barata/PR

Investir está ganhando um novo sentido com a mudança de governo no país. Os “investimentos” em políticas sociais estão ainda mais ameaçados pelos “investimentos” dos mercados financeiros. As ideias do Governo Temer surgem dois anos após o Brasil sair do Mapa Mundial da Fome, e contam com a celebração de jantares e coquetéis de luxo ao lado legislativo. A marcha pela desigualdade social ganhou a decisão na Câmara Federal com a aprovação da PEC 241 na terça-feira, 25 de outubro. A contagem regressiva para a conhecida “PEC do fim do mundo” segue agora para o Senado com novo nome (PEC 55), que também votará em dois turnos.

Argumentando o equilíbrio das contas públicas, o governo federal fez os cálculos para o ajuste financeiro. Porém, ao subtrair direitos sociais, houve um esquecimento de fatoriais como sonegação de impostos e taxação sobre os mais ricos. Some-se ainda uma nítida apresentação sobre a situação e projeção da dívida interna e externa do Brasil. O resultado não é equilibrado entre os cerca de 200 milhões de habitantes. A equação só agrada poucos que tem muito dinheiro.

Além da tributação desproporcional, o país apresenta desequilíbrio geográfico na qualidade de vida. As áreas vermelhas e laranjas apresentam os menores índices de IDHM | Imagem: Reprodução PNUD

“Ao invés de sair cortando os gastos e investimentos sociais - que na verdade melhoram a condição financeira em pouco tempo – o país deveria melhorar a sua arrecadação, que é o diagnóstico correto para crise que o Brasil enfrenta [dentro do âmbito global]. Foi a arrecadação que diminuiu, e não os gastos que aumentaram demais. E como é que o Estado poderia melhorar isso? Melhorando a sua forma de tributar. Isso não quer dizer que ele tenha que aumentar a carga tributária para as pessoas como um todo, mas distribuir melhor essa carga tributária. Hoje ela está pesando muito mais sobre as pessoas pobres, a classe média e os trabalhadores assalariados do que sobre os ricos e superricos que ganham, por exemplo, entre 100 e 150 mil reais por mês. Esse grupo hoje no país está contribuindo muito pouco. Eles têm uma capacidade muito maior de serem taxados nos diversos tributos”, avalia Grazielle David, especialista em orçamento público e assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC).

A economia, sobretudo no âmbito das finanças governamentais, é uma ciência humana pouco popular. Neste cenário, a enxurrada de informações e opiniões sobre a proposta da PEC 241 pode confundir mais que apresentar a proposta do chamado “teto para os gastos sociais” de forma completa. O governo federal e empresas do setor financeiro investem em campanhas a favor da PEC 241. Por outro lado, elementos importantes de debate deveriam estar na agenda social desde o dia 15 de julho, quando o atual governo tinha pouco mais de um mês de gestão provisória, mas já levantava a “perpetuação” de duas décadas com teto para os investimentos sociais.

“É essa a minha indignação. Entender como funciona, enquanto economista, o processo [financeiro por trás da PEC 241] e olhar como ele está sendo vendido na mídia, usando como subterfúgio um momento que, de fato, as dívidas públicas precisam ser sanadas, mas, que o caminho que está sendo tomado é antidemocrático. É um caminho que está jogando tudo goela abaixo, em nome de uma dita ‘boa política’”, confessa Leandro Morais, professor doutor em Economia pela PUC (SP) e assessor na Organização Internacional do Trabalho, das Nações Unidas (OIT/ONU).

A única forma "eficiente" apresentada pelo governo é o corte de investimentos | Imagem: Reprodução da internet

A “boa política” que Leandro ressalta é a construção de uma narrativa tendenciosa que nega – ao omitir - outros caminhos existentes para se organizar as finanças. Além disso, jornais e emissoras de TV e rádio estão se aproveitando dos desgastes políticos instaurados no país para reforçar a "proposta única" do governo. O professor destaca que, pelo menos dois pontos deveriam fazer parte das editorias jornalísticas ou de um diálogo transparente da gestão pública na abordagem da PEC 241. O primeiro é o apontamento dos efeitos nefastos que a PEC 241 ameaçam nas condições de vida população. O segundo é a necessidade de se abrir mais as contas e detalhar “quem é quem” no orçamento público do governo.

“Quem está levando [vantagem] é o mercado financeiro. Nem o governo, nem a grande mídia, falam nisso. O Brasil gasta por ano em torno de 350 bilhões de reais para pagamento de juros da dívida pública. Isso, junto com a amortização, confere algo em torno de 45% do total do orçamento público. Do orçamento público, entre três e quatro por cento vai para, cada um, para educação e saúde”, compara Leandro, lembrando do ciclo vicioso de misturas de capital político e econômico, quando grandes empresas do monopólio da comunicação também sonegam impostos de dívidas ativas com o governo, estimando-se hoje um acumulando próximo a um trilhão de reais.

Além da "proposta única", há um ponto de vista único nas manchete jornalísticas. Fala-se em despesas "do governo" e não em recursos "da população". Ao mesmo tempo, há meses, são realizadas mobilizações que ocupam 1.016 escolas, 51 universidades e 82 institutos federais. Na grande mídia, a pauta é praticamente silenciada. A voz política presente nos espaços de educação pública no país exige o fim da reforma do ensino médio, do Projeto Escola Sem Partido e, dentro da conjuntura política, contrária a PEC 241. Ampliando o olhar na sociedade civil, uma pesquisa da CUT/Vox Populi, realizada entre 09 e 13 de outubro, com duas mil pessoas, aponta que 70% dos entrevistados reprovam a PEC 241.

Sociedade civil tem organizado campanhas contra a PEC 241. Governo federal e empresas do setor financeiro tem campanhas favoráveis | Imagem: reprodução da internet

A proposta aprovada nesta terça-feira (25) sofreu alterações mínimas em relação à proposta inicial. Em números, permanece quase a mesma proposta para o cenário até 2036. A engrenagem permanece intacta, sem teto para os mais ricos e sem propostas às ilegalidades fiscais. Em estratégias de “convencimento”, abrem-se novas formas oportunistas do governo defender o congelamento. O texto atual considera que as áreas da saúde e da educação vão obedecer o teto a partir de 2018, e não mais a partir do no próximo ano. Proporcionalmente, a “redução de danos” é quase irrelevante, tendo em vista o “crescimento zero” para os orçamentos de investimentos públicos e o aumento das demandas sociais.

Tanto Grazielle quanto Leandro reforçam que os ajustes nas contas são necessários e, tecnicamente, são comuns para qualquer país em situação semelhante. Porém, ambos discordam do tom criado pela mídia e pelo governo sobre uma anormalidade ou crise financeira nas contas do país. Ou seja, há uma “tempestade política” num “copo d’água prático”. Grazielle reforça a necessidade de separar o entendimento de déficit fiscal – que é uma questão de ajuste temporário – de um “país quebrado” – que não é caso do Brasil, que, por exemplo, se dispôs a emprestar R$ 10 bilhões ao Fundo Monetário Internacional (FMI).

“[O governo] assumiu com uma tarefa ser estafeta dos grandes monopólios internacionais, transferir recursos para o grande capital, mesmo que à custa do orçamento público da União”, analisa Jonas Duarte, professor do Departamento de História da UFPB e doutor em História Econômica pela USP.

A opinião de Jonas aponta a importância das políticas contra a desigualdade social dos governos Lula e Dilma Rousseff. Há críticas às gestões anteriores, mas, ao mesmo tempo, o reconhecimento que se baseia em números, desde 2003. Esses bem diferentes das especulações que os grandes fundos de pensão, instituições financeiras e bancos começam a fazer até 2036. Pela vivência, o Semiárido é um dos recortes do ponto de vista do professor da UFPB.

Crescimento do orçamento para o Bolsa Família no Semiárido coincidiu com a melhorias de vários setores sociais e na dinamização da economia do país | Imagem: Reprodução INSA

“As mudanças no Semiárido também foram substanciais nesse período [gestões Lula e Dilma]. E é fácil compreendê-las. Sendo a região de menor renda per capita no país, e onde aparece a maior proporção de aposentados do Brasil ganhando o salário mínimo, o aumento real do salário mínimo em 72% teve grande impacto no cotidiano do Semiárido, nas centenas de pequenos e micromunicípios que tem como principal base da renda local, a aposentadoria”, avalia Jonas Duarte.

Não há espaço para considerações de dívidas sócio-históricas nas avaliações do mercado financeiro. Porém, alguns dados podem balançar opiniões contrárias sobre a importância das políticas distributivas, seja pelo ponto de vista de uma “alteridade”, seja pelo ponto de vista da “boa utilização” dos recursos públicos. Em 2013, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), divulgou estudo revelando que a cada R$ 1 aplicado pelo Programa Bolsa-Família, há um retorno de R$ 1,70 para a economia do país. Ou seja, os recursos do Bolsa-Família dinamizam os comércios locais e o setor industrial do país. Outro caminho é analisar os dados oferecidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que também afirmam mudanças significativas na alimentação, educação e saúde do Brasil, sobretudo, até 2014. A situação mais grave de insegurança alimentar e nutricional – a fome – apontava 6,9% da população em 2004. Dez anos depois para 3,2%, evidenciando que muito precisava ainda ser feito.

O Bolsa-Família não pode ser avaliado isoladamente nos avanços da expectativa de vida, direito à educação e acesso a renda registrados no Semiárido. Apesar das desigualdades regionais no país, o Índice de Desenvolvimento Humano dos Municípios (IDHM) aponta a necessidade de correlação de investimentos nas diversas áreas sociais. Tendo como exemplos Feira de Santana (BA) - município mais populoso do Semiárido - e Coxixola (PB) - município menos populoso - há um grande salto do IDHM sobretudo se compararmos os censos de 2000 e 2010. Considerando que o "perfeito" e longevidade, educação e renda seria "um", Feira passou de 0,5849 para 0,7119 em dez anos. Coxixola passou de 0,432 para 0,641.    

No Semiárido rural, houve uma convergência das políticas e programas sociais adotados desde 2003 com as lutas de movimentos sociais, sindicatos e pastorais que, desde a década de 1990, se fortaleciam em rede, defendendo a perspectiva da convivência com a estiagem. Um desses exemplos são os Programas de Formação e Mobilização para a Convivência com o Semiárido que favoreceram uma realidade diferente das velhas tragédias sociais, causada pela conhecida Indústria da Seca. A estiagem iniciada no início da década de 2010 foi diferente dos ciclos anteriores, não registrando mortes humanas ou saques em decorrência da falta de chuvas.

Por outro lado, ainda no governo Dilma Rousseff, algumas pautas sociais no campo brasileiro já ganhavam contornos de disputa por um modelo de valorização da agricultura familiar. Uma delas foi a indicação de Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura. Outros pontos como, por exemplo, a efetiva distribuição de terra, luta contra os agrotóxicos e efetivação de políticas agroecológicas já causavam insatisfação alguns meses atrás. Com a possível aprovação da PEC 241, essas pautas tendem a encontrar novas dimensões de dificuldade.

A agroecologia foi reconhecida pela ONU como estratégia efetiva de combater a fome no mundo | Foto: Agnaldo Rocha

Dentre conquistas e desafios, o Semiárido rural avançou pela criação de um novo imaginário social. Da imagem de chão rachado, brotaram propostas de autonomia e harmonia da agricultura familiar com o meio ambiente nos últimos 15 anos. Favorecer estruturações para o desenvolvimento da cultura popular, através de tecnologias sociais para o armazenamento de água, sementes e alimentos, por exemplo, apontaram uma descentralização dos investimentos sociais e uma nova perspectiva diante da conhecida Indústria da Seca.

O coronelismo, por exemplo, permanece na região, de acordo com Roberto Malvezzi, assessor de pastorais e movimentos sociais. Roberto avalia que o coronelismo resistiu aos séculos, se adaptando a novas estratégias de poder, mas sentiu um impacto devastador porque “em 15 anos, o povo e se organizou e fez mais do que o ‘coronéis’ ao longo de 500 anos”. Ao mesmo tempo, com as mudanças de perspectiva política, Roberto Malvezzi avalia que a Indústria da Seca tende a se fortalecer novamente.

“Resistir e lutar é a história dos nossos povos. Com as conquistas alcançadas nestes últimos anos creio que o mais importante é reforçar a organização popular, criar organizações com diversidade e pluralismo, com um objetivo fundamental de ampliar a democracia”, ressalta Jonas.