José tirou férias e foi passar uns dias com a mãe, na cidade onde nasceu, perto de Caruaru, no Pernambuco. Não ia lá há tanto tempo, que nem se lembrava mais de nada. A não ser do sofrimento da mãe para pegar água, todos os dias. Tinha que caminhar um tanto de terra e voltar aquilo tudo com um balde na cabeça. Um tormento.

José, hoje porteiro chefe do prédio onde moro, teve que ouvir muita piada quando voltou. É que justamente no dia em que ele viajou, a água em Laranjeiras se acabou por conta de obras e vazamentos da Cedae. No nosso edifício, só voltou quatro dias e cinco noites depois.

— Zé, você foi lá para a seca e levou nas costas a nossa água, pode confessar!

Zé ria, brincava também, hoje pela manhã, quando se sentou novamente na cadeira e recomeçou o batente. Tão pouco tempo de descanso… Mas foi só todo mundo sair e a bizarrice se acalmar para Zé, agora sério, me dizer sem pestanejar:

—- Não era preciso levar água, não! Agora a mãe não padece mais para buscar… – disse-me ele.

—- Ora, Zé! Mas estamos lendo aqui nos jornais que está a maior seca, que este verão foi o mais sofrido dos últimos anos lá no Nordeste!

—- Pois foi mesmo! Mas o governo inventou lá uma engenhoca que está dando a maior alegria para a turma. Chama cisterna rural. Quando chove, enche d’água e fica ali, guardada. Minha mãe tem só que ir até o quintal para encher o balde. É água para tomar banho, lavar louça, e pode até cozinhar, é só deixar ferver.

—- Eu sei disso, é um projeto antigo. Mas, me diga uma coisa: e quando não chove?

—- Ah, eles estão providenciando carro-pipa. Mas lá é diferente daqui. Quando compramos dez mil litros de água não dá nem para meia hora aqui no prédio. Lá, quinze mil litros de água são o suficiente para minha mãe (e um filho adolescente) passarem até seis meses. Sem sofrimento.

Terminei a conversa, peguei o elevador e fui me lembrando de uma reportagem que fiz para o Razão Social, antigo suplemento do jornal ‘O Globo’, em março de 2004. Haja memória! Naquela época o governo federal, junto com a ONG Articulação do Semiárido (ASA), lançou o programa 1 milhão de cisternas, contando com o apoio financeiro de algumas empresas. Há pouco recebi um release do Ministério do Desenvolvimento Social dando conta de que até agora foram construídas 401 mil e, segundo o texto, a expectativa diminuiu um pouco, porque a meta agora é atingir 750 mil cisternas até 2014.

Mas a reportagem de capa da edição que eu estava fechando não seria para noticiar o programa. Eu andava à procura, como se busca a felicidade, de um homem chamado Pedro Damião que, segundo Frei Betto, então assessor especial do governo e à frente do Programa Brasil Sem Miséria, teria sido o inventor da ideia, aquele que pensou primeiro na possibilidade de se fazer grandes tanques para armazenar a água da chuva e guardar para tempos de seca.

O tempo estava passando, o dia do fechamento da revista se aproximava, e minha pesquisa não tinha dado resultado. Fiz contato com repórteres conhecidos da região semiárida, falei com um fotógrafo que só trabalhava por aqueles lados, consegui o endereço eletrônico de ONGs locais. Ninguém conhecia Pedro Damião, ninguém sabia da existência do homem que criou as cisternas.

Até que, já quando meu tempo estava se esgotando e eu já ia desistindo, alguém da ASA me disse:

—- Olha, não conheço Pedro Damião nenhum. Mas, se você está procurando quem construiu a primeira cisterna, foi o Manoel Apolônio.

—- Não é possível! Eu ouvi o nome Pedro Damião várias vezes, em algumas palestras!

—- Podem ter se confundido. Isso é comum com nomes aqui do semiárido.

Não consegui entender por que ali se confunde muito os nomes, mas naquela hora isso não era o mais importante. Pedi e consegui o acesso ao verdadeiro e único Professor Pardal das cisternas e parti para tentar fazer contato. Não foi muito fácil, na verdade. Manoel não tinha telefone em casa e o que eu tinha era o telefone comunitário de onde ele morava. De recado em recado, no fim do dia estava com o próprio na linha. (Vocês não imaginam a sensação de vitória que o repórter sente quando uma apuração dá certo…). A história de Manoel Apolônio foi a reportagem de capa do Razão Social e eu conto aqui para vocês.

O agricultor sergipano tinha 17 anos, nos anos 50, quando se meteu num ônibus e foi tentar a vida em São Paulo. Deu sorte, conseguiu logo um emprego na construção civil, mas não se deu muito bem com o patrão. É que Manoel gostava de sonhar, e de vez em quando o pensamento se largava solto e as mãos paravam com o serviço que estavam fazendo. Pois foi num desses momentos, quando construía uma piscina, que ele se deixou imaginar como seria bom se em sua casa, no município baiano de Jeremoaba, tivesse um tanque imenso daqueles cheio de água, líquido que sempre fez muita falta por lá.

Sonhou tanto que foi demitido. E, tempos depois, lá estava nosso Manoel Apolônio de volta a Jeremoaba com a ideia do tanque grande na cabeça. Contou para os colegas, todo mundo caçoou. Abaixo, reproduzo o que ele me contou à época:

—- Eu desafiei todo mundo: faço a primeira de graça, é só alguém comprar o material. Um amigo do meu pai comprou. Choveu, a cisterna que eu construí segurou a água e o pessoal começou a ficar animado. Passei a cobrar por dia para construir cisterna na casa de todo mundo.

Analfabeto, Manoel se casou, teve duas filhas, e conseguiu educá-las com o dinheiro que ganhava na construção das cisternas. Quando o governo encampou sua ideia, ele fez as contas:

—- Construo uma cisterna com R$ 1 mil, mas as do governo custam R$ 4 mil. Deve ser material diferente – disse.

Quando conversou comigo, Manoel Apolônio estava aferroado em outra ideia, de fazer uma cisterna diferente, mais dinâmica, usando ferro em vez de cimento. Procurei o pessoal da ASA — cujo site (www.asa.org.br) mostra que ainda são bem atuantes na região — para saber se ele tinha conseguido, mas infelizmente essa parte da história vou ficar devendo a todos nós, porque ninguém mais sabe da vida de Manoel. Coisas de um país tão grande como o nosso.

A boa notícia é que, depois que o post foi ao ar, o pessoal da ASA me ligou dizendo que conseguiram o contato com a filha dele e que ele está muito bem, morando na sua Jeremoaba. Tentei falar com ela mas não tive sucesso. Semana que vem eu tento de novo e atualizo para vocês a história de Manoel!