Objetivo
Estocar nos tempos de fartura para ter nos tempos escassez. Essa máxima se aplica perfeitamente no Semiárido. Lá, a água da chuva tem sido guardada para matar a sede das pessoas, animais e das plantas. Neste espaço, ter água significa segurança hídrica e também segurança alimentar e nutricional, porque a água da chuva armazenada serve igualmente para produzir alimentos e sementes.
Ter água significa segurança hídrica e também segurança alimentar e nutricional, porque a água da chuva armazenada serve igualmente para produzir alimentos e sementes.
Com o intuito de ampliar o estoque de água das famílias, comunidades rurais e populações tradicionais para dar conta das necessidades dos plantios e das criações animais, a ASA criou em 2007 o Programa Uma Terra e Duas Águas, o P1+2. O nome do programa faz jus à estrutura mínima que as famílias precisam para produzirem – o espaço para plantio e criação animal, a terra, e a água para cultivar e manter a vida das plantas e dos animais. O P1+2 integra o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido, da ASA. Esse programa-guarda-chuva congrega também o Programa Um Milhão de Cisternas, o P1MC.
Os objetivos do P1+2 são promover a soberania e a segurança alimentar e nutricional das famílias agricultoras e fomentar a geração de emprego e renda para as mesmas. A estratégia para alcançar esses objetivos é estimular a construção de processos participativos para o desenvolvimento rural do Semiárido brasileiro.
Contexto
Concentração da água e da terra
Apesar do enorme potencial da natureza e do seu povo, o Semiárido é marcado por grandes desigualdades sociais. Historicamente, o governo investiu na construção de grandes obras hídricas como forma de solucionar o problema da falta de água na região. Estima-se que o Nordeste abriga mais de 70 mil açudes, que acumulam 37 bilhões de m³ de água. Todo esse volume de água está concentrado em propriedades particulares e não é compartilhado com a população difusa do Semiárido.
A distribuição das terras também é extremamente desigual. Segundo o Censo Agropecuário 2006 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 84,4% do total de estabelecimentos rurais brasileiros são unidades da agricultura familiar, que ocupam apenas 24,3% do total de terras destinadas à produção agropecuária. Já as unidades NÃO familiares representam 15,6 % dos estabelecimentos rurais e detêm 75,7% das terras. A concentração também é mostrada comparando-se a área média dos estabelecimentos familiares (18,37 ha) com a dos não familiares (309,18 ha).
Um dado que dá a dimensão da importância da agricultura familiar no Brasil é que 70% dos alimentos que chegam à mesa da população são provenientes do trabalho de quatro milhões de famílias, das quais um pouco mais da metade vive no Semiárido.
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
Ter acesso a uma alimentação saudável, de qualidade e em quantidade suficiente é um direito de todos e todas. Isso é Segurança Alimentar e Nutricional. Já a soberania alimentar está associada à autonomia dos povos de decidir o que comer e como produzir, respeitando seus hábitos alimentares.
Para garantir o Direito Humano à Alimentação é necessário ter como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis.
Nesse sentido, a ASA defende a produção agrícola de base agroecológica, que entre suas características está o cultivo livre de agrotóxicos. A ASA defende também o acesso à água, a terra e às sementes como condição fundamental para que as famílias do Semiárido brasileiro produzam alimentos que fazem parte de seu hábito alimentar.
Outras estratégias para a Soberania e a Segurança Alimentar e Nutricional na região são os bancos de sementes, as técnicas de produção e estocagem de alimentos para os animais, como os bancos de proteínas e a fenação, e sistemas produtivos como os quintais produtivos e a agrofloresta.
Metodologia
Visando a segurança alimentar e nutricional das famílias agricultoras do Semiárido em situações de insegurança alimentar, a sustentabilidade ambiental, social, cultural e econômica, o P1+2 baseia-se nos seguintes princípios e estratégias metodológicas:
- Fortalecimento dos processos educativos, socio-organizativos e políticos locais, contribuindo para a autonomia e o protagonismo dos agricultores e agricultoras e suas organizações na construção do desenvolvimento sustentável;
- Valorização das agricultoras e dos agricultores e de suas organizações como inovadores técnicos e sociais e, portanto, detentores de conhecimentos e experiências;
- Favorecimento de interações entre agricultoras/es de comunidades, municípios, estados e regiões distintas dentro do Semiárido;
- Promoção de processos formativos baseados na Educação Popular, na qual os conhecimentos prático e teórico se retro-alimentam. Tal metodologia favorece o estabelecimento de uma dinâmica horizontal entre agricultores e suas organizações. Nela, agricultores-experimentadores se tornam também agricultores-promotores, encarregando-se de apoiar as atividades de capacitação técnica e estímulo à experimentação na microrregião, nos municípios e comunidades;
- Adoção da Agroecologia como base técnica-metodológica e científica para a construção do novo modelo de desenvolvimento rural e do fortalecimento de ações de convivência com o Semiárido.
Atividades
Seleção e cadastramento das famílias
As comissões municipais e comunitárias participam efetivamente do cadastramento e seleção das famílias a partir dos critérios estabelecidos. Estas comissões ajudam a identificar as famílias e comunidades; suas necessidades hídricas e as características do terreno onde as tecnologias serão construídas.
Para ser contemplada, a família precisa atender a critérios como: ter renda per capita familiar de até meio salário mínimo; estar inscrita no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico); ter Número de Identificação Social (NIS); possuir cisternas de água para consumo humano; ser beneficiada ou vir a ser com prioridade no caso de extrema pobreza.
As famílias chefiadas por mulheres, com crianças de 0 a 6 anos, crianças frequentando a escola, pessoas com 65 anos ou mais e com deficiência física e/ou mental devem ser atendidas em caráter de prioridade.
Além disso, somam-se requisitos de produção de alimentos - lógica de produção (agricultura, pecuária, extrativismo) e as formas de manejo adotadas pelas famílias - e critérios técnicos relacionados à construção de tecnologias como características de solos, formação rochosa (cristalino, sedimentar, arenito), localização das implementações (tamanho da área, proximidade dos sistemas produtivos).
Capacitações
O primeiro passo, antes da construção das tecnologias, é a participação das famílias em formações para a convivência com o Semiárido – as capacitações em Gerenciamento da Água para Produção de Alimentos (Gapa) e em Sistema Simplificado de Manejo da Água (SSMA).
Gapa
Durante os cursos de Gapa, as famílias se apropriam de conhecimentos sobre o manejo da água no arredor de casa, os cuidados com a horta, as plantas medicinais, o uso dos defensivos naturais, a fertilização do solo, o acesso aos fundos Rotativo Solidário entre outros assuntos.
SSMA
Após a implementação da tecnologia social, a família participará da capacitação em Sistema Simplificado de Manejo da Água (SSMA). Durante o curso, nas atividades em campo, as famílias montam um sistema simplificado de aguamento que funcione com economia de água.
O SSMA é realizado na propriedade de uma família para que os participantes percebam a estratégia utilizada pelos anfitriões para a produção do arredor do quintal, para o manejo animal, preservação e multiplicação das sementes crioulas e outras questões relacionadas com o sistema produtivo familiar.
Capacitação de Pedreiros
A lógica da construção das barragens subterrâneas, tanques de pedra/caldeirões, cisternas calçadão e cisternas de enxurrada adaptadas pra roça requer capacitações diferenciadas dado às singularidades de cada tecnologia de captação e armazenamento de água da chuva. Para além da técnica para a construção, os participantes também aprendem a identificar o melhor local para a edificação da tecnologia, assim como a fazer a conservação, manejo, reparos e outros aspectos.
Nas capacitações também são discutidos conteúdos teóricos relacionados com a proposta da convivência o Semiárido. Um dos objetivos é inserir os pedreiros na lógica do Programa e torná-los atores e sujeitos dos processos, pois eles têm contato direto com as famílias e comunidades.
Implementação das tecnologias
As tecnologias que captam e guardam água da chuva para produção de alimentos são variadas e levam em consideração as características do local onde vão ser implementadas e a sua interação com a estratégia utilizada pela família para produzir.
Atualmente, o P1+2 trabalha com as seguintes tecnologias sociais:
Cisterna-calçadão – É uma tecnologia que capta a água da chuva por meio de um calçadão de cimento de 200 m² construído sobre o solo. Com essa área do calçadão, 300 mm de chuva são suficientes para encher a cisterna, que tem capacidade para 52 mil l. Por meio de canos, a chuva que cai no calçadão escoa para a cisterna, construída na parte mais baixa do terreno e próxima à área de produção. O calçadão também é usado para secagem de alguns grãos como feijão e milho, e raspa de mandioca. A água captada é utilizada para irrigar quintais produtivos: plantar fruteiras, hortaliças e plantas medicinais, e para criação de animais.
Barragem subterrânea – É construída em áreas de baixios, córregos e riachos que se formam no inverno, que é a época chuvosa no Semiárido. Sua construção é feita escavando-se uma vala até a camada impermeável do solo, a rocha. Essa vala é forrada por uma lona de plástico e depois fechada novamente. Por fim, é construído o sangradouro de alvenaria na parte onde a água passa com mais força e por onde o excesso dela vai escorrer. Dessa forma, cria-se uma barreira que “segura” a água da chuva que escorre por baixo da terra, deixando a área encharcada.
Para garantir água no período mais seco do ano, são construídos poços a, aproximadamente, 5 m de distância do barramento. O poço serve para retirar a água armazenada na barragem, que pode ser utilizada para pequenas irrigações, possibilitando que as famílias produzam durante o ano inteiro. No inverno, é possível plantar culturas que necessitam de mais água, como o arroz e alguns tipos de capim. Dependendo do tipo de cultura implantada pode-se ter mais de uma colheita por ano.
Tanque de pedra ou caldeirão - É uma tecnologia comum em áreas de serra ou onde existem lajedos, que funcionam como área de captação da água de chuva. São fendas largas, barrocas ou buracos naturais, normalmente de granito. O volume de água armazenado vai depender do tamanho e da profundidade do tanque. Para aumentar a capacidade, são erguidas paredes na parte mais baixa ou ao redor do caldeirão natural, que servem como barreira para acumular mais água.
É uma tecnologia de uso comunitário. A água armazenada é utilizada para o consumo dos animais, plantações e os afazeres domésticos. Lavar a roupa é uma das práticas mais comuns. As lavadeiras estendem os panos nas pedras e vegetação próxima para secarem ao sol.
Bomba d’água popular – Aproveita os poços tubulares desativados para extrair água subterrânea por meio de um equipamento manual que contém uma roda volante. Quando girada, essa roda puxa grandes volumes de água, com pouco esforço físico. Pode ser instalada em poços de até 80 m de profundidade. Nos poços de 40 m, chega a puxar até mil litros de água em uma hora.
É uma tecnologia de uso comunitário, de baixo custo e fácil manuseio. Se bem cuidada, pode durar até cinquenta anos. A água da bomba tem vários usos: para produzir alimentos, dar de beber aos animais e usar nos afazeres domésticos. Geralmente, cada bomba beneficia dez famílias.
Barreiro-trincheira – São tanques longos, estreitos e fundos escavados no solo. Partindo do conhecimento que as famílias têm da região, é construído em terreno plano e próximo ao da área de produção. Com capacidade para armazenar, no mínimo, 500 mil litros de água, tem a vantagem de ser estreito, o que diminui a ação do vento e do sol sobre a água. Isso faz com que a água evapore menos e fique armazenada por mais tempo durante a estiagem.
A tecnologia armazena água da chuva para dessedentação animal e produção de verduras e frutas que servirão à alimentação da família, garantindo soberania e segurança alimentar. O excedente da produção é comercializado e, assim, garante geração de renda para as famílias de agricultores/as.
Barraginha – Tem entre dois e três metros de profundidade, com diâmetro entre 12 e 30 metros. É construída no formato de concha ou semicírculo e armazena água da chuva por dois a três meses, possibilitando que o solo permaneça úmido por mais tempo. A sugestão é que as barraginhas sejam sucessivas. Assim, quando uma sangrar, a água abastece a seguinte. A umidade do solo no entorno favorece o plantio de frutas, verduras e legumes.
A tecnologia dá condições para o manejo agroecológico das unidades produtivas familiares e mobiliza as famílias para uma ação coletiva. Também melhora a qualidade do solo por acumular matéria orgânica e mantém o microclima ao seu redor mais agradável.
Cisterna-enxurrada – Tem capacidade para até 52 mil litros e é construída dentro da terra, ficando somente a cobertura de forma cônica acima da superfície. O terreno é usado como área de captação. Quando chove, a água escorre pela terra e antes de cair para a cisterna passa por duas ou três pequenas caixas decantadoras, dispostas em sequência. Os canos instalados auxiliam o escoamento da água para dentro do reservatório. Com a função de filtrar areia e outros detritos que possam seguir com a água, os decantadores retêm esses resíduos para impedir o acúmulo no fundo da cisterna.
A retirada da água é feita por bomba de repuxo manual. A água estocada serve para criação de pequenos animais, cultivos de hortaliças, plantas medicinais e frutíferas.
Intercâmbios
Os intercâmbios proporcionados pelo P1+2 são um dos principais componentes do Programa. Eles proporcionam momentos de partilha, troca e construção de conhecimentos entre agricultores e agricultoras de comunidades, municípios, territórios e estados diferentes do Semiárido.
O resultado do diálogo entre agricultores e agricultoras e técnicos e técnicas é bastante positivo. Da mistura do conhecimento popular com o técnico - produzido por organizações da sociedade civil, universidades e centros de pesquisas – geram soluções inovadoras para a convivência com o Semiárido e com impactos positivos na vida das famílias.
Sistematização de experiências
Importante instrumento pedagógico de construção coletiva do conhecimento, as sistematização das experiências de convivência com o Semiárido potencializam a divulgação das iniciativas bem-sucedidas no campo da agricultura familiar.
Do processo coletivo de recuperação e registro de saberes e práticas locais de convivência com o Semiárido, resultam dois produtos de comunicação: boletim impresso e banner, ambos intitulados O Candeeiro.
Independente do formato, as sistematizações são centradas na história de vida dos/as agricultores/as e causam efeitos relevantes como a produção e à socialização do conhecimento, a elevação da autoestima das famílias ao terem suas histórias registradas e reconhecidas e o aumento da consciência das famílias com relação ao seu processo de produção e outros elementos envolvidos na vida delas.