Por Fernanda Cruz - Asacom*
A água (ou a falta dela) sempre esteve na centralidade do debate no Semiárido. Até se chegar nas políticas de convivência com a região que hoje existem e que, reconhecidamente, vêm democratizando o acesso à água de qualidade na região, muitos povos foram tirados dos seus territórios para que açudes e barragens fossem construídos, sem que isso mudasse significativamente a realidade dessas populações.
Mesmo após a chegada de políticas que valorizam o saber local e que provocam um menor impacto ao meio ambiente, a exemplo daquelas que disseminam as cisternas de placas de cimento junto às moradias dos povos do Semiárido dando autonomia às famílias, a disputa com as grandes obras só tem se intensificado ao longo dos anos. De um lado, temos um milhão de famílias com acesso à água de qualidade para beber e cozinhar através das cisternas de 16 mil litros, que custam, em média, R$ 3,5 mil. De outro, temos a transposição do rio São Francisco, que após 13 anos de obras se evidencia como mais uma obra cuja finalidade está em beneficiar os grandes produtores e não o povo pobre, que ainda padece sem abastecimento regular de água e que até o momento custou quase R$ 10 bilhões.
“A área a ser atingida pela obra é muito pequena em relação ao conjunto do Semiárido. Além disso, a população esparsa, que é normalmente a que mais necessita de água para beber, por exemplo, está situada muito longe da área da transposição. As populações não estão na centralidade do projeto, porque a real finalidade é criar ou ampliar o polo de fruticultura de exportação, aos moldes do que existe em Juazeiro e Petrolina, além de favorecer a criação de camarões em Fortaleza. Deste modo, a transposição não está a serviço do povo. Por trás dela, está a privatização das águas e o hidronegócio”, explica Naidison Baptista, da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) pelo estado da Bahia.
Segundo o pesquisador João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), a transposição vem evidenciando que o problema da região não é a falta d’água, mas a má gestão desse recurso. “Atualmente saem diariamente 9m³/segundo de água de Itaparica (BA), mas apenas 3,5m³/seg. chegam em Boqueirão (PB). Dessa vazão, apenas 1,5 m³ é destinada à população, que agora deixará de receber por conta dos reparos que serão feitos nos açudes do Eixo Leste, anunciados pelo Ministério da Integração. No entanto, mesmo com a descontinuidade do abastecimento, Boqueirão passará a abastecer Acauã (PB). É um modelo que não se sustenta”, explica.
Mas levar em consideração estes fatos, requer disposição e interesse político. E isso não tem sido demonstrado pelo presidente Michel Temer. Durante a abertura 8° Fórum Mundial da Água, no dia 18, em Brasília, ele destacou o quanto essa obra era importante para combater a seca, como se a transposição fosse a redenção para o Semiárido brasileiro.
“Esse é um pensamento equivocado porque, em primeiro lugar, seca não se combate, se convive com ela. Em segundo lugar, há muitos anos que o povo do Semiárido vem demonstrando que, a partir da estratégia de estocagem de água, alimento e sementes crioulas, é possível viver bem na região. Essa afirmação de Temer nos remonta aos anos 1970 quando milhares de pessoas morriam em decorrência da seca e da fome porque as políticas públicas era todas voltadas para quem tinha terra e poder. Estamos no final de um longo período de seca, considerada uma das piores dos últimos 30 anos e ninguém morreu por conta dela. Com certeza isso não é mérito da transposição”, rebate Valquíria Lima, da ASA pelo estado de Minas Gerais.
Cada um com suas especificidades, mas os conflitos vividos no Semiárido brasileiro, provocados pelo choque de interesses políticos e econômicos, se repetem em muitos locais do Brasil e do mundo. Em alguns poucos espaços no Fórum das Corporações, como tem sido chamado o 8º Fórum Mundial da Água; e, sobretudo, no Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), que teve a luta dos povos pela água como direito na centralidade do debate, foram apresentadas realidades diversas do México, Palestina, Moçambique, Índia, Suíça, Cuba e até de outras regiões do próprio Brasil, nas quais a água é tratada como mercadoria e não como recurso imprescindível à vida.
Durante a Plenária Unificada 3 – Experiência de Luta e Resistência, no Fama, Muhammed Muteawa, integrante da Via Campesina Internacional e membro da Federação do Trabalho Agrícola da Palestina explicou a situação da crise hídrica sofrida na Palestina, em especial na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Segundo ele, a falta de acesso à água naqueles territórios não é resultado de mudanças climáticas, nem da ação de grandes corporações transnacionais. “A crise da água na Palestina é uma crise fabricada. É um assunto político, em um dos países em que chove todo ano e não deveria lidar com falta de água”, garante Muhamed. “A primeira responsável por essa crise é a ocupação israelense, que controla as fontes e os recursos da água”, completa.
Em Moçambique, a realidade não é muito distinta. Segundo Luis Muchanga, da União Camponesa de Moçambique (Unac), embora o país não esteja na lista daqueles que vivem um estresse hídrico, os pequenos agricultores não podem usar a água das suas comunidades, porque elas estão contaminadas pelas grandes indústrias. “Existe uma distância muito grande entre o que se promete na política e na prática desses políticos, após eleitos. (...) Precisamos de fato que a FAO se responsabilize por construir um pacto político, econômico e social que nos resguarde de situações como essas”, afirma. Ele, que contou a sua história nos dois fóruns em Brasília e também no Fórum Social Mundial, destaca a importância dos povos falarem sobre isso: “Temos que usar nossa voz para romper essas amarras”.
Segundo Roselita Victor, agricultora e integrante do Polo Sindical da Borborema e da ASA Paraíba, que compôs as falas da Plenária Unificada 3, “entender o contexto de outros povos e etnias é muito importante para gente, porque não estão deslocados da realidade que temos vivido hoje no Semiárido. No caso do povo palestino, por exemplo, eles vivem muitos ataques, mas é um povo que resiste e luta sempre. Temos muito a aprender com eles, assim como com os companheiros do México que vêm defendendo a água como bem comum; e as pescadoras de Salvador, que estão em luta para continuar no mar, entendendo que ele também é um bem comum e que não pode ser privatizado”.
Nas ruas - Cerca de 5 mil pessoas dos movimentos e organizações da sociedade civil reunidos no Fama seguiram em marcha hoje (22) pelas ruas de Brasília, reivindicando o direito à água e alertando a população local e participantes do fórum das corporações sobre as reais intenções desse espaço e os riscos de mercantilização das águas. Para Valquíria é fundamental que o povo vá às ruas para mostrar resistência num momento de tanta perda de direitos. “Precisamos mostrar para toda a sociedade que é preciso debater e olhar o tema da água não apenas na perspectiva da escassez e das mudanças climáticas. É preciso entender que tudo que está ocorrendo em torno da água, inclusive essa disputa de narrativa, tem interesses econômicos por trás. Precisamos repensar, por exemplo, o nosso modelo de produção, pois o agronegócio não concentra apenas terra, mas também água, que muitas vezes, mesmo que indiretamente, é tirada das comunidades”.
Em sua Declaração Final, o FAMA também deixa claro que a luta pela água como direito não termina com o evento. “O compromisso fundamental é de se manter em luta, enraizar os processos de construção até aqui realizados e manter a mobilização viva”.
* Com informação da Assessoria de Comunicação do Fama
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