Políticas públicas
03.03.2020
No Semiárido, famílias rurais começam a se distanciar da fome após junção de políticas públicas
A virada foi impulsionada pelo acesso das famílias à água para produção de alimentos e ao fomento produtivo por meio de um programa da ASA

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Por Verônica Pragana - Asacom

Rosilene, de Varzelândia, é uma das mulheres atendidas pelo P1+2 Fomento | Foto: Nilmar Lage/Arquivo Asacom

A diferença é visível, principalmente, nos pratos de comida. Eles passaram a ter ingredientes diferentes daqueles de costume, fresquinhos porque são colhidos no quintal de casa e cultivados sem veneno. As cores e os sabores se diversificam nas refeições de quem sobrevivia com pouco e onde a fome espreitava bem de perto.

Uma pequena parcela de famílias rurais do Semiárido brasileiro - 2.370 - em situação de pobreza ou extrema pobreza foram acompanhadas por dois anos por uma assessoria técnica agroecológica, conquistaram tecnologias para guardar água das chuvas para o plantio ou criação animal e receberam R$ 3 mil para investir na sua atividade produtiva da forma como desejasse.

De uma situação de insegurança alimentar, essas famílias comemoram a chegada de condições mínimas para se manterem em suas terras, cultivá-las e colherem seus próprios alimentos. Os resultados apareceram em tempo curto. Bastaram dois anos para mudanças significativas na vida das famílias se tornarem realidade festejada. Tem família que está produzindo em quantidade que dá até para doar, trocar ou vender. Há relatos de economia por não carecer comprar tudo que antes era necessário.

Este é um dos resultados da junção de duas políticas públicas essenciais - acesso à água para produção e fomento - por meio do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), da Articulação Semiárido (ASA). Para avaliar esta etapa do programa, a ASA reúne, de hoje (3) a quinta-feira (5), representantes das organizações da rede que executaram o programa e das instituições financiadoras desta ação, o Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) e do Ministério da Cidadania (MC). O encontro acontece em Camaragibe, na região metropolitana do Recife.

Segundo Jandira Lopes, da coordenação da Acefarca, organização da ASA que atua no oeste da Bahia, este projeto trouxe como resultado concreto a melhoria da qualidade de vida das famílias a partir da mudança na alimentação e também nas relações familiares, com o empoderamento das mulheres.

"Percebemos uma melhoria na autoestima em todas as 70 famílias que acompanhamos nos municípios de Tabocas e Brejolândia. O fato deles desenvolverem os projetos, pensarem e projetarem como usar o recurso foi uma experiência muito interessante. A quantia de R$ 3 mil é pouco, mas trouxe muita vontade de aplicá-la naquilo que a família precisava e não tinha condições. A gene viu muito o brilho nos olhos das mulheres por estarem conseguindo implementar algo que sonhavam", assegura Jandira.

A família de Ivane dos Santos Lopes e Milton Pinto de Souza, que mora na comunidade de Brejinho, em Brejolândia, um município com 10,5 mil habitantes foi uma das famílias que participaram do P1+2 Fomento. Milton era um dos agricultores da região que migrava para trabalhar na colheita da cana-de-açúcar. Ivane ficava cuidando sozinha dos filhos, da gestão da casa e da água e fazendo o que podia para garantir a comida no prato.

"Antes tinha dias que era só o feijão e arroz, às vezes ovo. Com a segunda água, a alimentação mudou bastante, o prato hoje é mais enfeitado, temos cenoura, quiabo, tomate, alface, couve. Temos plantas medicinais e usamos isso com a certeza que não tem veneno. É comida pra nos deixar fortes, não colocar nossa vida em risco. Melhorou aqui em casa e na casa da minha mãe, pois sempre levo verduras pra ela. Sobra folhas até para as galinhas e a água também dá para as galinhas, porcos e para as outras árvores frutíferas do quintal. Depois da segunda água, as coisas melhoraram bastante, os gastos com a feira ficaram menor”, conta Ivane.

Esse projeto também tinha uma clara orientação de visibilizar o trabalho das mulheres e a participação delas no projeto produtivo da família. Segundo a Organização das Nações Unidas, apenas 10% de acesso ao crédito e 5% de assistência técnica são destinadas às mulheres do campo em todo o mundo.

Mãe de nove filhos, sozinha com os três mais novos enquanto o marido trabalha longe, Rosilene tem uma vida bem comum entre as mulheres beneficiadas pelo P1+2 Fomento | Foto: Nilmar Lage/Arquivo Asacom

Mulheres como Rosilene Borges de Varzelândia, no norte de Minas Gerais, entrevistada e fotografada por Nilmar Lage em janeiro passado. "Mulher de fibra, ela tem 46 anos e é mãe de sete filhos, o mais novo está com um ano e meio e é ela quem cuida da casa, do bebê e dos outros dois filhos menores: Bruno de nove anos e Bruna de 12 anos. O marido e três filhos estão trabalhando em São Paulo, na data da nossa conversa havia mais de três meses que ela não recebia notícias e nem ajuda deles. Contudo Rosilene não se abate. Enquanto conversávamos ela não perdia o foco no pequeno Samuel, cuidava do almoço e transbordava simpatia e alto astral", apontou Nilmar no relato que fez da visita à família, um relato sensível à lida desta mulher que representa milhares de outras no campo e na cidade.

Além das 2.370 famílias atendidas pelo P1+2 Fomento, outras 4.451 foram contempladas pelo programa no formato convencional, que contempla a implementação da tecnologia, a participação das famílias em processos formativos como capacitações e intercâmbios, e a doação de kits de infraestrutura para os subsistemas produtivos.

Apesar dos resultados alcançados pelo P1+2, a continuidade desta ação depende do repasse pelo Ministério da Cidadania de recurso referente ao Chamamento Público 11/2019, no qual a ASA, por meio da AP1MC, organização jurídica que representa a articulação, foi selecionada para executar ações de acesso à segunda água em Pernambuco.

Inserido no Programa Cisternas - a política pública que assegura o acesso à água de consumo e de produção às famílias rurais de todo o Brasil - as tecnologias de segunda água têm recebido verbas cada vez menores para a implementação, apesar da grande lista de espera que a ASA estima só na região semiárida ser de 797,5 mil famílias.

Pesquisa internacional - A partir do segundo semestre de 2018, foi iniciada uma pesquisa recomendada pelo antigo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) para avaliar os impactos quantitativos do P1+2. Três universidades estão envolvidas na iniciativa, sendo duas internacionais: a Universidade Federal de Pernambuco, a Universidade de Berkeley (EUA) e a Universidade de Mannheim (Alemanha).

O estudo vai investigar as dimensões de produção de alimentos, segurança alimentar, trabalho e renda, permanência das famílias no campo e o empoderamento das mulheres.

De agosto a dezembro de 2018, foi realizada a primeira parte da pesquisa: três mil famílias em 63 municípios de nove estados do Semiárido foram entrevistadas, uma parte delas tendo acabado de receber as tecnologias de armazenamento de água da chuva e outra sem as tecnologias.

A segunda etapa da pesquisa está em fase de preparação e no aguardo da liberação de recursos do Ministério da Cidadania.