Por Adriana Amâncio - Asacom
O Inquérito sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia, produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), lançado na última quinta-feira, 8, durante uma live no canal da Rede Penssan no Youtube, revela que, no Nordeste, estão concentrados 7,7 milhões das pessoas que passam fome no Brasil. Em números absolutos, a região é a que mais concentra pessoas em situação de fome no país. Esses números dão uma ideia do peso da fome no Semiárido, que corresponde a 56,46% do território nordestino e onde vivem cerca de 23 milhões de habitantes, segundo o Censo Demográfico para o Semiárido, produzido em 2012, com base nos dados do Censo IBGE 2010.
“A pesquisa diz que a fome tem lugar e que um desses lugares é o Norte e o Semiárido nordestino. O Semiárido do Brasil, palco de vários genocídios, gerados pelas políticas de combate à seca, caracterizadas pela concentração de água, riqueza, terra e oportunidades. Lugar que o povo, a partir das políticas de convivência com o Semiárido saiu do genocídio, gerou a vida, mostrando ao mundo como se vive e como se convive com o Semiárido. (..) Lugar, no entanto, que, hoje volta, com destaque, ao Mapa da Fome (...) devido à pandemia, mas devido principalmente à extinção das políticas públicas de segurança alimentar e de convivência com o Semiárido”, analisa o membro da Conferência Nacional Popular, Democrática e Autônoma por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e da Coordenação Executiva da ASA Brasil , em um dos painéis, Naidison Baptista.
Com esta fala, Naidison pontuou o triste protagonismo do Semiárido no cenário da fome, que ensaiou os seus primeiros passos em 2016, com o esvaziamento de políticas sociais estratégicas, e foi aguçado pela pandemia, em 2020. O representante faz outros destaques em relação aos dados, enfatizando, por exemplo, que a fome tem gênero, pois segundo a pesquisa, “os lares chefiados por mulheres correspondem a 11,1% daqueles que possuem pessoas passando fome”. Ele também destaca que a fome está relacionada à baixa escolaridade, pois segundo o inquérito, “a fome está presente em 14,7% dos lares onde a pessoa principal não tem escolaridade ou possui o ensino fundamental incompleto.” Além disso, a pesquisa informa que a fome praticamente dobrou, saindo de 21,8% para 44,2% nos lares onde não há acesso à água.
“A fome é resultado do desmantelamento de políticas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), da linha do Programa de Economia Solidária, da retirada dos povos tradicionais dos seus territórios, que perdem a sua capacidade de produzir alimentos. É fruto da negação do acesso à água de beber para mais de 350 mil famílias e de água de produzir para mais de 800 mil famílias”, reflete Naidison.
Mais de 400 pessoas estiveram presentes no evento online. Entre elas, representantes de organizações da sociedade civil, universidades, redes e movimentos populares, e agências de cooperação internacional. Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e coordenador da rede Penssan, Renato Maluf, abriu o evento destacando a urgência do momento devido ao dado revelado na pesquisa, que mostra que “o Brasil regrediu 15 anos em 5”, referindo-se ao avanço da insegurança alimentar grave no país, entre os anos de 2003 e 2018. Antes da explanação, ele convocou um minuto de silêncio pelas vítimas fatais da Covid-19 no Brasil.
A gravidade da situação de fome pela qual passa o Brasil comparada a sua experiência na garantia da segurança alimentar, a partir da criação do Consea Nacional, em 2003, foi enfatizada pela diretora Executiva da Oxfam Brasil, Kátia Maia. “Nós, da Oxfam, sempre trabalhamos globalmente a experiência do Brasil na garantia da segurança alimentar. Não há nada que justifique pessoas passando fome no Brasil. Isso passa por escolhas políticas, que têm sido feitas atualmente. Lembro do Consea, extinto no primeiro ano deste governo” afirmou.
Durante a apresentação do Inquérito, uma das pesquisadoras responsáveis, Ana Maria Segall, destacou que a pesquisa teve como referência a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), ferramenta que avalia, de maneira direta, a evolução da segurança alimentar, a partir da qual foram aplicadas oito perguntas. Especialmente em relação à fome no meio rural, a pesquisadora destacou que o fato tem relação direta com “a redução da renda devido à dificuldade de escoamento da produção”. Sobre os caminhos para combater o problema, apontou “a reinstituição do auxílio emergencial em valores adequados às necessidades básicas e pelo tempo necessário, recomposição das políticas sociais de combate à fome e a recomposição dos canais participativos da sociedade nos espaços de debate democrático.”
Parceiro na realização da pesquisa, o Instituto Vox Populi destacou, por meio do seu diretor - Presidente, Marcos Coimbra, que a pesquisa foi uma experiência profissional e humana. “As pessoas fizeram questão de responder as perguntas, demonstrando o interesse em serem ouvidas”. Sobre a equipe envolvida nas entrevistas, Marcos enfatizou que “não se mediu esforços para se chegar em pontos de amostragem mais difíceis, em pontos mais remotos (...) muitos trouxeram relatos intensamente emocionantes sobre as dificuldades enfrentadas pelas pessoas”. O diretor concluiu lamentando “a certeza de que tudo piorou de dezembro pra cá. A pobreza no campo e na cidade ficou mais aguda, a crise sanitária se aprofundou. (...) a prevenção à pandemia continuou a ser marcada pela irracionalidade e a recusa em reconhecer as recomendações científicas mais básicas.”
O Inquérito sobre a fome no Brasil apontou que a fome tem um viés de raça, estando presente em 10,7% dos lares habitados por pessoas pretas e pardas, contra 7,5% dos lares habitados por pessoas brancas. Representante da Coalização Negra, Douglas Belchior, destacou que esses dados são importantes para entendermos o que estamos vivendo agora. “Durante a pandemia, a gente [o Brasil] testemunhou o aumento em 5 trilhões da riqueza dos mais ricos. O Brasil ganhou, parabéns para este país, 11 novos milionários. Como é razoável, conviver com uma notícia como esta, quando as pessoas estão pedindo comida na rua! (...) Não há, no momento, uma articulação forte o suficiente para impor limites a um governo que promove isso”, criticou.
O membro da coordenação Executiva da ASA Brasil, Naidison Baptista, finalizou a sua participação, conclamando o Semiárido à agir. “Não nos resta outro caminho senão resistir. (...) Resistir e lutar por um auxílio emergencial digno e não de três meses, mas até quando durar a pandemia e até mais. Pela retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), pelo funcionamento efetivo do Programa de Alimentação Escolar (Pnae), pela retomada do Programa de Cisternas, pela assistência técnica agroecológica, pelas terras e territórios dos povos e comunidades tradicionais”. Por fim, arrematou, afirmando que muitas destas políticas, criadas pelas organizações que compõem a ASA Brasil, já têm eficácia comprovada no combate à fome, razão pela qual estão sendo reivindicadas.
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