Fome no Semiárido
23.04.2021
Semiárido abriga quase metade das pessoas que passam fome no Nordeste
Estimativa cruza dados da Vigisan com os do Ministério da Integração Nacional com base no Censo do IBGE (2010) e prevê que, no mínimo 3 milhões e 674 mil pessoas passem fome na região

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Por Adriana Amâncio - Asacom

Sem renda, famílias do Semiárido se desesperam em busca de alimento - Foto: João Zinclar

Depois dos óbitos, a fome é outra evidência cruel da forma como a pandemia da Covid-19 vem atingindo o Brasil. No Semiárido, esta é a expressão mais dura da pandemia nas vidas de, no mínimo, cerca de 3 milhões e 674 mil pessoas que se encontram em situação de insegurança alimentar grave. Ou seja: no Semiárido estão, no mínimo, quase metade das 7,7 milhões de pessoas em situação de fome no Nordeste, segundo o Inquérito Nacional Sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgados no início deste mês.

Na avaliação da Médica Epidemiologista, Professora  Aposentada do Departamento de Saúde Coletiva-FCM-UNICAMP, Pesquisadora associada/Fiocruz Brasília e da Rede Penssan, Ana Maria Segall-Corrêa, “provavelmente estes dados podem ser bem maiores, caso fosse aplicada uma pesquisa especificamente na região semiárida, que possui indicadores sociais específicos e historicamente bem preocupantes”.

A estimativa dos mais de 3 milhões de pessoas com fome na região semiárida resulta da aplicação do percentual de 13,08% - que corresponde ao índice  de pessoas nesta situação no Nordeste - ao total de habitantes do Semiárido, que é de 26.620.000, segundo dados do Ministério da Integração Nacional com base no Censo do IBGE 2010, divulgados no artigo “É no Semiárido que a vida pulsa,” publicado no portal da Fundação Nacional Joaquim Nabuco (Fundaj), no dia 17 de julho de 2018.

Na pesquisa da Rede Penssan, outros dados chamam atenção, pois traduzem questões históricas e sensíveis ao Semiárido. Na relação acesso à água e insegurança alimentar, a pesquisa constata que o número de pessoas em situação de fome praticamente dobrou nas casas onde há insegurança hídrica. Os números saíram de 21,8% para 44,2%. Do universo de pessoas em situação de fome, 12% dos domicílios são rurais, formados por famílias agricultoras, quilombolas, indígenas ou ribeirinhas. 

Os lares chefiados por mulheres que possuem pessoas passando fome correspondem a 11,1% .Já os lares na mesma situação chefiados por homens chegam a 7,7%. Além de localização geográfica e gênero, a fome também tem raça. O mal está presente em 10,7% das casas habitadas por pessoas pretas ou pardas e em 7,5% dos lares onde moram pessoas brancas.

Fome, falta de água e retrocesso - O aumento da fome atrelado à insegurança hídrica é uma prova de retrocesso. Bem antes da pandemia, em 1999, a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), no início das suas atividades, estimou que ao menos 1 milhão de famílias necessitam de água de beber para ter a condição mínima de conviver com o Semiárido. Na época, a rede também identificou que a falta de água e, consequentemente, de comida eram a principal causa das  mortes de famílias rurais em regiões remotas do Semiárido.

A primeira grande política pública direcionada ao combate deste problema, junto às famílias de regiões remotas do Semiárido e em situação de extrema vulnerabilidade,  foi o Programa Um Milhão de Cisternas Rurais para o Semiárido (P1MC), que este ano celebra 21 anos, tendo erguido no Semiárido  1 milhão e 200 mil cisternas de 16 mil litros, beneficiando aproximadamente  seis milhões de pessoas. Este dado refere-se a todas as  tecnologias implementadas, independente dos projetos realizados pela ASA Brasil. 

O Impacto do P1MC em outros números - No âmbito apenas dos projetos executados pela Associação Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (AP1MC) - organização que faz a gestão física e financeira dos projetos da ASA - desde 2000, foram implementadas cerca de 629 mil tecnologias, beneficiando diretamente uma média de 629 mil famílias, o equivalente a quase 3,2 milhões de pessoas, multiplicando o número por cinco, que é a média de pessoas que uma família possui, segundo o IBGE.  Esta política exerce um impacto de gênero, pois do total de pessoas beneficiadas, 68,7% são mulheres, enquanto 31,3% são do sexo masculino; e abrange 1.157 dos 1.262 municípios do Semiárido brasileiro.  As informações são do banco de dados da ASA Brasil e correspondem apenas às tecnologias implementadas pela Articulação com financiamento dos diversos projetos.

A  iniciativa rompe com as tecnologias hídricas de armazenamento de água em grandes represas, muitas vezes localizadas em terras particulares, que era a lógica da Indústria da Seca, e leva água  com qualidade de consumo humano para o terreiro das casas das famílias. “O programa [P1MC] teve um resultado, que todos e todas conhecemos. Um resultado maravilhoso, que trouxe água ao pé da casa para mais de  um milhão e 200 mil famílias, ou seja, para mais de  5 milhões de pessoas! Então isso fez uma diferença. Essa diferença foi somada com a cisterna de produção ou com implementos de água para produção, que criaram oportunidades para as famílias que moravam nos espaços que nós costumamos ver como chão rachado, pudessem produzir, consumir, vender, criar espaços de vida”, comenta o membro da Coordenação Estadual da ASA Brasil, Naidison Baptista. 

Água que mata a fome - Mais tarde, em 2007, a ASA criou o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). O programa trazia, além do acesso a tecnologias como cisterna de 52 mil litros, barragem subterrânea e tanque de pedra,  capacitações técnicas em gestão de água e produção agroecológica. Em todo o Semiárido, mais de 200 mil tecnologias foram construídas, beneficiando cerca de 535.910 pessoas, ou seja, mais de meio milhão de pessoas direta e indiretamente, considerando algumas implementações comunitárias. Neste universo, aproximadamente 68,2% são mulheres e 31,8% são homens.  Em todo Semiárido, foram beneficiados 741 municípios. Os dados correspondem apenas às tecnologias implementadas no âmbito dos projetos  executados pela ASA Brasil.

“O acesso à água é um elemento da convivência com o Semiárido. Ao lado disso, tem o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), tem o Programa da Alimentação Escolar ( Pnae). Então tem toda uma gama de políticas, que somadas à dimensão da água, criaram condições para que as pessoas vivessem bem no Semiárido. Agora, o que é que acontece especialmente nos dois últimos anos: todas essas políticas estão paradas. Elas foram mantidas dentro do orçamento, mas dentro da rubrica, não tem dinheiro. Nós já temos no mínimo três anos que essas políticas não funcionam. Não temos uma cisterna nova de produção. Temos uma aqui ou ali por restos de projetos que se executam. O resultado disso é a fome que volta ao Brasil: 19 milhões de pessoas passando fome. Não é um número pequeno, é um número assombroso. E dessas [pessoas], boa parte estão no Norte e no Semiárido brasileiro”, explica Naidison.

É preciso cobrar dos políticos - “A ASA tem um projeto de convivência com o Semiárido e não pode abrir mão dele”, defende Naidison Baptista. Segundo ele, esta deve ser a filosofia das organizações que, há décadas, defendem, propagam, criam e realizam políticas de convivência com o Semiárido. Cumprindo esta premissa, a organização enviou, no último dia 13 de abril, uma carta aos congressistas, (hiperlink de acesso à carta) na qual cobra medidas objetivas para erradicar a fome no país. Dentre as reivindicações, pede que sejam viabilizadas as seguintes medidas: “garantir auxílio emergencial de no mínimo R$ 600 para enquanto durar a pandemia” e  a “retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)”. 

“A ASA está no coletivo que prepara a Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional, que vai ser realizada pela sociedade civil, e esse coletivo, junto com o coletivo de pesquisadores em segurança alimentar, acabou de fazer este inquérito, que tem tido ampla repercussão no país. Foi assim que a gente construiu o Programa Um Milhão de Cisternas, foi assim que nós chegamos a 1 milhão e 200 mil cisternas, chegamos a vários bancos de sementes, a  200 mil cisternas de produção de alimentos. Então, nós temos uma história, um knowhow, um processo metodológico de trabalhar essas políticas públicas. Apesar do momento difícil, o negócio é não desistir, não baixar a cabeça. (...) embora o governo queira matar, não estamos de acordo em morrer”, conclui Naidison.

Mais água, mais alimento - A agricultora agroecológica e integrante da coordenação da Associação de Comercialização de Produtos Agroecológicos Ecoborborema, Marlene Pereira, tem muita clareza sobre o que era a sua vida antes e depois do acesso à água. Ela tem 51 anos, é mãe de dois filhos e tem dois netinhos. Ela mora no Sítio Floriano, região do Brejo paraibano desde 2012. Antes disso, a agricultora morava em uma casa que contava apenas com uma cisterna de 16 mil litros. Naquela época, plantava-se apenas mandioca, feijão e milho, as conhecidas culturas de sequeiro. A produção era usada essencialmente para o alimento da família. 

No ano de 2012, com a morte da tia, Marlene herdou uma pequena área no Sítio Floriano, que possuía, além da cisterna de 16 mil litros, uma cisterna calçadão, um poço amazonas e uma cacimba. Com mais água, Marlene ampliou e diversificou a produção de alimentos. De quatro culturas, ela passou a produzir 100 produtos diferentes. Hoje, conta ela, a plantação tem  banana, laranja, passando pelo alho poró, abacate, cenoura e abóbora. 

“Sem água, não dava nem para produzir para a nossa alimentação. Juntando essas águas e mais o conhecimento técnico agroecológico e as outras políticas, Pnae, PAA e a DAP [Declaração de Aptidão ao Pronaf] que eu tirei, a gente passou a ter mais alimento na mesa e deu pra vender também. Mesmo com a pandemia, a gente conseguiu manter a produção e as vendas. A gente vende no delivery, pelo Instagram da Feira Agroecológica de Lagoa Seca e pelo da Feira Agroecológica da UEPB em Campina Grande. Se não fosse o conhecimento agroecológico, eu não conseguiria continuar plantando mesmo na pandemia”, conta Marlene, cheia de orgulho.

A fome aumenta, o auxílio diminui - Se por um lado a experiência da agricultora Marlene Pereira reforça o papel do acesso à água no combate à fome e a eficiência dos conhecimentos  agroecológicos, por outro lado milhares de outras mulheres, que ainda não tiveram acesso a tais políticas sentem o peso da pandemia nos pratos vazios sobre a mesa. As mulheres do Semiárido já vinham sentindo o esvaziamento das políticas de convivência com o Semiárido, voltando a sofrer com as inseguranças hídrica e alimentar. Com a pandemia, muitas delas foram impedidas de vender os seus produtos na feira devido à queda no movimento. Para completar, a jornada de trabalho  doméstico aumentou com as crianças em casa e a necessidade de proteger a vida de  familiares do grupo de risco da Covid-19, a exemplo de pessoas idosas e que convivem com algum tipo de deficiência.

Diante disso, o auxílio emergencial se tornou a única esperança de comida e água para as mulheres do Semiárido. Nesta segunda rodada, o programa está sendo garantido por meio da PEC 186, a chamada PEC Emergencial. Os valores do benefício, que já haviam sido reduzidos de R$ 600 para R$ 300, agora, transitam entre R$ 150 e R$ 375. A redução vai na contramão do aumento da fome no Brasil. O auxílio tem sido a única renda para muitas famílias empobrecidas do Brasil, e, segundo dados do Programa “A casa é sua” da Campanha em Defesa da Renda Básica, foi usado para comprar comida por 53% das pessoas que acessaram este benefício social. 

Esta matemática tem tirado o sono da agricultora agroecológica Maria Aparecida Vieira, do município de Igaci, região Agreste de Alagoas. Os 600 reais e depois os 300 reais deu pra tapear . Mas, depois, as coisas foi aumentando. Aqui tem o botijão de gás, que é  90 reais, e se comprar para um mês, sai por 100 reais. Olhe, aqui em casa eram seis pessoas, mesmo o meu filho tirando o dele, o dinheiro acabava antes do mês. Eu acho, minha irmã, que não dá pra fazer quase nada [refere-se ao novo valor]! Você chega no supermercado, compra duas, três coisas, acaba o dinheiro. É uma situação muito difícil, viu!” desabafa a agricultora.

Maria Aparecida vivia, até antes da pandemia, da venda dos produtos agroecológicos na Feira da Agricultura Familiar. Ao lado do marido, ela produzia batata doce, macaxeira, goiaba e pinha. Com a pandemia, o apurado que chegava a R$ 150 por feira, caiu para R$ 80, depois para R$ 30, até que ela e o marido deixaram de frequentar o espaço. “Não compensava mais ir a feira, pois a gente tava ganhando menos do que uma diária de campo, que pagando bem é de 50 reais”, complementa. Durante a primeira rodada do auxílio, viviam na casa de Aparecida, ela o marido, o filho e a esposa, e mais dois netos.