Saúde da Mulher Rural
28.05.2021
Sobrecarga de trabalho na pandemia afeta saúde das mulheres rurais do Semiárido
Um estudo da Sempre Viva Organização Feminista (SOF) revela que, no meio rural brasileiro, 62% das mulheres passaram a cuidar de alguém na pandemia, função que, somada aos cuidados com as crianças sem aulas presenciais, com a casa e a roça, têm levado as mulheres à exaustão

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Por Adriana Amâncio - Asacom

Do lado direito da foto, Lucivane Machado, sente-se solitária e oprimida com a sobrecarga de trabalho doméstico na pandemia - Foto: Acervo pessoal

Neste dia 28 de Maio é celebrado o Dia de Luta pela Saúde da Mulher. Nesta data, chama atenção o adoecimento das mulheres rurais sobre as quais recaiu grande parte das atividades de cuidado com outras pessoas na pandemia. Para se ter uma ideia, o estudo “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia” realizado pela Sempre Viva Organização Feminista (SOF) em parceria com a organização Gênero e Número, constatou que 62% das mulheres rurais passaram a cuidar de alguém na pandemia. Do total de entrevistadas, pouco mais de 60% eram negras. 

Esta função somada aos cuidados com as crianças que tiveram as aulas presenciais suspensas, com a casa e o trabalho na roça, compõem uma jornada extensa, solitária e desgastante que impacta na saúde da mulher. Se as estatísticas levarem em consideração o trabalho de cuidado, vão constatar um aumento no volume de atividades, o que vai na contramão da crise no trabalho remunerado. O resultado disso é que relatos de depressão, ansiedade e exaustão física tem se tornado comuns entre as mulheres rurais. 

O ambiente doméstico é opressor_ Quem sentiu na pele tal situação foi a agricultora, artesã e uma das diretoras do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais no Ceará (MMTR), Lucivane Ferreira, que mora na comunidade de Apiques, em Itapipoca, no Ceará. Antes da pandemia, a sua rotina combinava os cuidados com os quatro filhos, o cultivo na roça, a produção artesanal com a “Renda de Birro”, de onde tirava o sustento da casa, e as atividades políticas, que envolviam viagens e reuniões. Na pandemia, o universo de Lucivane se limitou ao espaço doméstico, o qual ela define como “muito opressor”, devido à rotina solitária, repetitiva e exaustiva. 

“A gente se atarefou, dobrou e redobrou as nossas tarefas dentro de casa. Porque quando as crianças vão para a escola, a gente tem menos trabalho, né!? A partir do momento que fica tudo em casa,  tem atividade [online] para a gente acompanhar. O próprio consumo diário de alimentação aumentou. Além do Covid, eu tive sintomas de depressão, insônia, perturbação, pensamentos negativos, dificuldade de enfrentar os problemas, falta de ânimo. Eu peguei [Covid] nos cuidados da minha família. Porque como o meu pai e as minhas irmãs pegaram, precisaria de alguém para cuidar deles”, relata Lucivane.

Buscar atendimento médico para a doença não foi fácil, nos conta a trabalhadora rural. O posto de saúde da comunidade não oferece atendimento psicológico, por isso, quem precisa, deve se dirigir aos centros de saúde localizados na área urbana. Com a pandemia,  este tipo de atendimento foi suspenso e a saída foi encontrar meios comunitários para enfrentar a doença. “Foi um período que fechou tudo. Pra você ir na cidade, tinha que pagar um transporte caro. Não tinha o atendimento. E aí assim, eu contei com algumas ajudas de algumas companheiras do movimento, via internet mesmo”, completa.

Segundo Mazé Morais, a Contag reconhece o aumento nos casos de violência contra a mulher no campo - Foto: Contag

Isolamento social aumenta o trabalho reprodutivo das mulheres_ O confinamento não representa apenas a sobrecarga de trabalho, mas sim, o risco de sofrer mais intensamente com a violência doméstica, como destaca a secretária de Políticas para as Mulheres da Confederação Nacional de Trabalhadoras/es na Agricultura Familiar (Contag), Mazé Morais. “O confinamento tem dado a oportunidade do agressor se sentir liberado para praticar um estupro. E piora ainda mais porque o governo está desassistindo a Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Para nós do campo, nós agricultoras familiares, há um silêncio muito grande, é como se não existisse violência no campo”, denuncia.

As mulheres rurais foram “afetadas pela pandemia de forma desigual”, complementa Mazé. Sentindo os reflexos das “ações antidemocráticas” e de “negação de direitos” do atual governo, “as mulheres sentem a pandemia de uma forma diferenciada por estarem na linha de frente do cuidado e por estarem na linha de frente da sustentabilidade da vida”, complementa.

“Temos vários relatos de mulheres agricultoras com depressão, com ansiedade, crise de pânico e alguns transtornos como reflexo desta pandemia. Nós, seres humanos, não fomos feitos para ficarmos isolados, sobretudo nós rurais. As mulheres rurais moram muito distantes e ficam isoladas”, justifica.

Divisão do trabalho doméstico e fortalecimento do SUS_ Para Mazé, a saúde das mulheres rurais começa dentro de casa com o “compartilhamento do trabalho doméstico entre as pessoas que moram no lar”. Ainda segundo ela, o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) com foco no ambiente rural é fundamental, aponta. “Precisamos de investimento nas unidades de saúde, no atendimento às mulheres vítimas de violência, de políticas que considerem a relação saúde e produção de alimentos saudáveis. Uma política onde a saúde seja vista como vida”, conclui.

O Autocuidado é negligenciado_ As mulheres rurais do Semiárido são reconhecidas por terem muita força para lidar com múltiplas tarefas, incluindo a produção de alimentos que beneficia as populações urbanas. Muitas vezes, esta força representa preocupação e cuidado com toda a família e negligência com o autocuidado. A falta de acesso a informação, posturas machistas dos maridos e companheiros e a falta de acesso aos serviços de saúde estão entre as razões que impedem as mulheres rurais de exercerem o autocuidado. 

A enfermeira especializada em saúde da família com ênfase na saúde do campo, Myllena Santos, alerta que muitas das mulheres rurais têm problemas crônicos, como hipertensão, e com essa sobrecarga de trabalho negligenciam esse autocuidado. “É uma sobrecarga que coloca essas mulheres num lugar do adoecimento que traz um quadro bem característico. Eu acompanhei mulheres com quadros severos de ansiedade, de depressão e até tentativas de suicídios por simplesmente não aguentarem mais. Por não ver perspectivas! E aí acaba que esse cuidado é negligenciado também e quando se vai ver já está bem agravado”, pondera Myllena.

Nos casos em que além da sobrecarga de trabalho, há a violência de gênero, a profissional destaca que a situação se agrava. “Intensifica tudo, né! Aí você vai acrescentar o medo. Esse quadro psicológico, que já está abalado, fica mais intenso ainda, podendo trazer quadros mais graves de adoecimento mental. Tem muitos agressores que proíbem o contato dessa mulher com as unidades de saúde porque a saúde acaba sendo um canal de acesso dessa mulher a outros direitos. Com isso, piora ainda mais esse acesso à saúde e isso dificulta o processo de cuidado dessa mulher, que já é tão negligenciado”, reflete.

O SUS e a saúde da mulher rural_ Quando nos atendeu, a enfermeira Myllena estava no município de Lábrea (AM) atuando no Programa da Malária com comunidades indígenas da região Médio Purus. Antes disso, no estado de Pernambuco, a profissional desenvolveu pesquisas junto às comunidades indígena Xucurú, e quilombola, Castanhinho. Pela experiência com os povos rurais e tradicionais, ela considera que “o SUS é revolucionário, mas sofre ataques” e para atender a população rural precisa ser levado em conta alguns pontos estratégicos.

“O acesso básico às coisas é a primeira barreira. Eu trabalhei em Garanhuns. Essas mulheres não têm transporte para irem à cidade e muitas delas vão andando para ter acesso, por exemplo, a algum serviço de saúde. As mulheres indígenas, quando estão nas cidades, sofrem com a barreira cultural. O profissional de saúde precisa ter uma sensibilidade muito grande de compreender que a gente vive numa cultura diferente. Essas mulheres dos povos tradicionais têm muito a ensinar. Muito do saber popular, do saber ancestral que elas trazem, coisas que a gente não precisa de muito recurso, só precisa de disponibilidade mesmo, isso acaba sendo muito positivo”, arremata Myllena.

Mulheres rurais tidas como reserva de cuidado_  A pesquisa sobre o trabalho das mulheres durante a pandemia foi realizada entre os meses de abril e maio de 2020, envolvendo 2.600 mulheres de todo o Brasil, que responderam a um questionário online. O levantamento abordou ainda questões sobre o tempo de monitoramento e companhia de outras pessoas, que segundo 72% das mulheres, foi ampliado durante a pandemia, levando-as a ficarem sempre alertas, e os casos de violência de gênero que atingiu 11,7% das mulheres rurais com renda de até um salário mínimo.

Antes mesmo da pandemia, a crise do desemprego no Brasil já atingia índices alarmantes. Com a crise sanitária, além do desemprego, a situação econômica do país ganhou ênfase nos debates políticos. De acordo com a integrante da SOF, Míriam Nobre, o debate da recuperação econômica é “hipócrita”, se for levar em consideração que “a economia que sustenta a vida não parou. Pelo contrário, com muitas dinâmicas econômicas tendo vindo pra dentro de casa, acelerou, aumentou as responsabilidades das mulheres”. A pesquisadora ainda enfatiza que, antes mesmo da pandemia, as mulheres rurais já viviam uma realidade intensamente marcada pelo cuidado. 

“As mulheres no meio rural já funcionam para o sistema como reserva de cuidados. Para a economia funcionar, para as pessoas irem pro trabalho, precisa produzir essas pessoas. E essas pessoas são produzidas com o trabalho de cuidado. Esse trabalho é feito pelas mulheres e sobretudo pelas mulheres racializadas negras e indígenas”. 

Com a chegada da pandemia, avança Míriam, o trabalho se intensificou, trazendo novas exigências e desafios para as mulheres rurais. “Chega a pandemia e coloca uma necessidade de cuidado muito maior para evitar a doença [Covid]. E as crianças não estarem com aula presencial, estarem em casa. As agricultoras estão acompanhando isso com ansiedade”, explica. 

No futuro pós pandemia, conclui, Míriam, a esperança é que a sociedade reconheça a importância do cuidado para a manutenção da vida. “Eu acho que essa coisa do legado depende da gente fazer um debate forte para que ele permaneça. Então, entender o cuidado como uma atividade essencial e olhar para como ele é distribuído. Na nossa sociedade, ele é muito mal distribuído, as mulheres cuidam mais. Reconhecer que isso é necessário, que organiza a economia, e daí a gente redistribui para que as mulheres possam ser cuidadas”, finaliza.