Por Adriana Amâncio - ASACom
A pandemia da Covid-19 não silenciou as vozes de mais de 800 lideranças de organizações e movimentos sociais e de Frentes Parlamentares de defesa do Semiárido, da Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Sustentável, que, reunidas na Mobilização Nacional em Defesa do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) - Defenda a Alimentação Escolar, realizado na última terça-feira (8), reafirmaram:Viva o Pnae!
Além do grito, a grande plenária decidiu reivindicar uma audiência com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lyra (PP), e do Senado Federal, o Rodrigo Pacheco (DEM), com o objetivo de discutir Projetos de Lei que propõem mudanças estruturais no Pnae e que estão tramitando em ambas as casas.
Também serão encaminhadas moções às Casas legislativas estaduais e municipais, alertando sobre os riscos destas mudanças à garantia do direito à alimentação escolar saudável. Um dos projetos em questão é o PL 3292, de autoria do Major Vitor Hugo (PSL), que afeta de forma particular às famílias do Semiárido brasileiro, sugerindo uma cota de 40% de aquisição de leite fluido e retira a prioridade de assentados/as, indígenas e quilombolas da cota de aquisição de 30% dos alimentos da agricultura familiar.
De olho no recurso - Em sua participação no ato, a integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN) e do Observatório da Alimentação Escolar (OAE), Mariana Santarelli, destacou que esses e outros PLs representam “um interesse dos grandes setores do agronegócio no orçamento bilionário do Pnae, de R$ 4, 2 bilhões”, alerta.
A este valor, que tem como origem o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), somam-se ainda os recursos injetados pelos estados e municípios. Esse montante considerável, avança Mariana, desperta o interesse nos grandes empresários de emplacar “uma tentativa de criar uma reserva de mercado para determinados produtos”. Resumindo a sua análise, Mariana considerou perigosa a decisão pelo Congresso sobre quais alimentos devem compor o cardápio do Pnae.
“Tem outros PLs que obrigam, por exemplo, a oferta de carne suína. Então, imagina, que a gente está correndo o risco de que os cardápios passem a ser escolhidos no Congresso Nacional, que é um problema de operacionalidade, além da perda de autonomia dos estados e municípios. A gente conseguiu trazer um direcionamento das cotas internacionais para setores, [assentados/as, quilombolas e indígenas] que nunca tiveram acesso às compras e vendas, e a gente não pode perder esse importante mecanismo”, enfatizou.
Na avaliação do responsável pelo Setor de Produção do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), Hamilton Fornazieri, que representou assentados e assentadas no evento, acabar com a prioridade deste público no Pnae significa levar “milhares e milhares de pequenos agricultores e assentados da reforma agrária para a cidade, fazer êxodo rural, porque não tem uma atividade que gere renda e os mantenham no campo”, alertou.
Famílias do Semiárido serão impactadas - Representando a Frente Parlamentar de Convivência com o Semiárido do Congresso Nacional, o deputado Federal Carlos Veras (PT) destacou a necessidade de não apenas preservar, mas também aperfeiçoar o Pnae. “Não queremos, em nosso Semiárido, a imposição de outra cultura. O Pnae respeita a cultura local, a produção local e a diversidade, e isso tem que ser respeitado! É uma referência de política pública, que nós precisamos preservar, inclusive melhorar, fazer um reajuste nos valores”, ponderou.
Em meio ao discurso, o parlamentar informou que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, da qual é presidente, havia aprovado no dia anterior, segunda (7), dois eixos prioritários: o Direito Humano à Alimentação e o Direito Humano à vacina contra à Covid-19. Em seguida, destacou a necessidade de políticas afirmativas, a exemplo do que aconteceu durante a pandemia, com a continuidade da compra dos produtos da agricultura familiar por parte do Pnae, e reiterou o papel da política como um divisor de águas na segurança alimentar de muitas crianças e adolescentes das famílias da agricultura familiar no Semiárido.
“Eu, que venho da agricultura familiar, sei da dificuldade dos nossos alunos da Rede Pública, que muitas vezes íamos à escola não motivados porque íamos ter o ensino médio, mas a gente ia de olho na merenda escolar, que era escassa. E o Pnae não só garante uma merenda escolar todos os dias, mas merenda escolar de qualidade com produtos orgânicos, produzidos pela agricultura familiar. Então, viva o Pnae!” concluiu o deputado.
Mudanças no programa desestimulam famílias agricultoras - O coordenador Comercial de Compras de Mercado Institucional da Cooperativa de Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá (Coopercuc), José Gonçalves, que já vem sofrendo com a queda e a paralisação das vendas do Pnae, teme a aprovação das mudanças. Antes da pandemia, a Coopercuc, formada por 272 agricultores e agricultoras familiares do Semiárido baiano, sendo 70% mulheres, vendia em média entre R$ 250 mil e R$ 480 mil por ano para o Programa. Em 2020, o valor caiu para R$ 160 mil e, neste ano, a Cooperativa não vendeu um centavo para o programa.
“É um baque terrível para as famílias agricultoras, que já não estão mais querendo produzir porque não têm um mercado garantido e com essa mudança na lei, piora. Esse movimento [propostas de PLs] é para favorecer quem tem mais força. Em uma região que não produz leite, por exemplo, vai ficar prejudicada,” avalia José.
O que preocupa o integrante da Coopercuc ganha corpo na intenção do PL 284/2021, que se aprovado, permite, ao longo da pandemia, além da oferta de alimentos, a distribuição de recursos financeiros às famílias, por meio de um vale ou cartão alimentação. Em maio deste ano, o Observatório da Alimentação Escolar (OAÊ), um fórum formado por organizações e movimentos sociais para monitorar e mobilizar a sociedade em defesa do Pnae, emitiu um posicionamento contrário ao requerimento 857/2021, que solicitava urgência na votação da proposta.
Durante o ato, o Presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Segurança Alimentar, Pe João, criticou a proposta que considera uma ruptura com o Pnae. “O programa rompe com a agricultura e bota um cartão”. Aprofundando a crítica, Mariana Santarelli pondera que “o receio é que esse recurso de R$ 4,2 bilhões passe a ser operacionalizado através de cartão alimentação de forma permanente. Esses modelos já vêm sendo operados por grandes empresas de tickect alimentação, que só podem ser usados em grandes redes de supermercados.
Essas mudanças, se aprovadas, contestam a proposta atual do Pnae de garantir ao menos 30% da alimentação escolar oriunda da agricultura familiar, dando prioridade às produções dos/as assentados e assentadas da reforma agrária e aos povos tradicionais. A compra de alimentos em grandes redes de supermercados pode favorecer o consumo de produtos ultraprocessados disponíveis nas prateleiras dos supermercados.
Outras ameaças - Ainda estão em trâmite no Congresso Nacional os PLs 4195/ 2012 de autoria do deputado Federal Afonso Hamm (PP), que introduz a carne suína no cardápio do Pnae. Segundo o deputado e coordenador do Ato, Pedro Uczai (PT), “na crise de suinocultura, eles disseram: ‘ vamos resolver o plano do mercado aqui, está faltando consumidor, vamos botar na merenda escolar e resolve o problema’. Este projeto já está em análise nas Comissões de Agricultura e Educação do Congresso.
De autoria do Senador Ronaldo Caiado (DEM), o Projeto de Lei do Senado 524 introduz produtos da Ovinocapriconocultura, ou seja, carne de ovino, leite de ovino, na alimentação escolar de todos/as estudantes brasileiros/as. O texto, segundo o deputado Pedro Uczai, já está na comissão terminativa do Senado, o que implica na sua aprovação final, caso assim ocorra na Comissão de Agricultura.
Se aprovado, além de ampliar a participação do Congresso Nacional na composição do cardápio da merenda escolar, os PL’s retiram a autonomia dos estados e municípios e dos nutricionistas e das nutricionistas que compõem os cardápios, pensando na ingestão de nutrientes.
Olhando para a realidade do Semiárido, o Coordenador Comercial de Compras de Mercado Institucional da Coopercurc, José Gonçalves, considera que as mudanças propostas são retrocessos. “Eles estão querendo tirar uma conquista histórica da agricultura familiar! Retirar a prioridade dos assentados, indígenas e quilombolas significa uma perda enorme. Sem contar o tanto de crianças que estão passando fome em suas casas, né! Porque contava com a alimentação escolar. Mas estamos na luta, estamos de olho”, conclui.
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