Dia da Agricultura Familiar e Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha
27.07.2021
Para combater a pobreza rural, é preciso executar políticas públicas de superação das desigualdades de gênero, raça e etnia
Pesquisa socioeconômica, realizada junto à agricultoras familiares do Semiárido que adotaram a caderneta agroecológica, aponta avanços e desafios que devem ser considerados na construção de políticas públicas para o segmento

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Por Érica Daiane Costa | ASACom - Edição: Verônica Pragana | ASACom

ACR e Agricultura Adraiane Ferreira | Foto: Arquivo Pró-Semiárido/Manuela Cavadas

De setembro de 2019 a fevereiro de 2020, 909 agricultoras anotaram tudo o que saía de seus quintais produtivos nas cadernetas agroecológicas. Eram mulheres dos estados de Sergipe, Ceará, Piauí, Bahia, Paraíba e Pernambuco, sendo 41% delas moradoras do Semiárido baiano.

Para conhecer melhor o perfil destas mulheres, elas responderam também um questionário socioeconômico, no qual “54,55% se autodeclarou parda, enquanto 24,0% preta. Segundo a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), significa que 78,56% das agricultoras podem ser consideradas mulheres negras”, informa o relatório de sistematização dos resultados.

Os dados coletados na pesquisa também revelaram que as mulheres pretas têm a maior quantidade de filhos, menor participação nos espaços políticos e apresentam-se mais vulneráveis socialmente. Nos resultados colhidos nas cadernetas agroecológicas, a produção nos quintais está no mesmo patamar das mulheres brancas, por exemplo.

Os dados de seis meses de anotações nas Cadernetas Agroecológicas revelaram que “as agricultoras manejam, pelo menos, 1183 tipos de produtos”, o que financeiramente representa mais de R$ 1,3 milhão. Esse valor corresponde a toda a produção reportada pelas agricultoras que é destinada ao consumo, doação, troca ou venda.

Na divulgação dos dados da pesquisa neste mês de julho, uma das questões defendidas pelas organizações envolvidas nesta ação aponta para “a necessidade de se adotar ações efetivas para a superação das desigualdades de gênero, raça e etnia nas políticas de combate à pobreza. Sem isso, quaisquer outras políticas e ações terão resultados incompletos ou pouco efetivos”, concluíram.

As agricultoras são acompanhadas pelos projetos  Viva o Semiárido (PI), Paulo Freire (CE), Procase (PB), Pró-Semiárido (BA), Dom Távora (SE), Dom Hélder (PE), com financiamento do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA). E a pesquisa foi realizada pelo Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

Sistematização - A média de idade destas mulheres é de 48 anos, sendo que 86,34% possui filhas/os. O relatório aponta ainda que “pouco mais da metade (50,4%) possui terra própria e 13,2% cultiva a terra de terceiros, na forma de comodato. Dentre as que são proprietárias de terra, apenas 19% possui documentação em seu nome. Em relação ao acesso à água, 77,2% das agricultoras possuem cisterna de beber, 41,5%, cisterna de produção, 39,3%, poço artesiano e 20,4% recebe água por meio de caminhão pipa.

As agricultoras contempladas com as cadernetas participaram de formações, inclusive momentos de construção do mapa da propriedade para identificação do trabalho da mulher, além de rodas de aprendizagem. Muitos destes momentos contaram com a participação dos homens, que são chamados a discutir a rotina diária das mulheres e a valorização do trabalho não remunerado. Segundo pesquisa da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/2017), as mulheres rurais no Brasil despendem 27,5 horas semanais de trabalho não remunerado, enquanto os homens apenas 5,2 horas.

Nas devolutivas feitas às famílias, mulheres e homens se surpreendiam com a contribuição do trabalho feminino para a renda familiar, mas, agora, “elas [agricultoras] têm números em mãos, pesquisa”, reforça Telma Sueli Magalhães, técnica do Serviço Territorial de Apoio a Agricultura Familiar (Setaf), que faz parte da Secretaria de Desenvolvimento Rural da Bahia, órgão responsável pela execução do Projeto Pró-Semiárido em 32 municípios baianos.

Na avaliação de Elizabeth, “os resultados numéricos são impressionantes, mas a caderneta, essa prática, essa metodologia política e pedagógica, é muito além dos resultados numéricos". A caderneta representa um “instrumento político pedagógico de empoderamento feminino”, complementa Telma.

Empoderamento - Em Sento Sé, das sete agricultoras que usaram a caderneta, as que ainda não integravam a Rede Mulher, passaram a integrar, contou Jaciara Ladislau, que é agricultora e coordenadora da referida rede. Além disso, a prática da troca se intensificou, especialmente a troca de produtos nas feiras e de sementes crioulas nos eventos realizados antes da pandemia.

Outro resultado apontado pela agricultora foi a autonomia das mulheres para irem sozinhas vender seus produtos na feira agroecológica no centro da cidade, algo que normalmente era feito pelos companheiros ou pelas mulheres na companhia dos mesmos. Isso acontece porque “elas [agricultoras] começaram a se olhar diferente”, identifica Aidraiane Ferreira, Agente Comunitária Rural (ACR), que está ligada ao Setaf de Jacobina (BA).

Uma série de resultados são apontados pela ACR, que visita periodicamente as agricultoras a partir do acompanhamento da Associação do Assentamento Lagoa de Dentro, em Ourolândia: agricultoras que chegaram a calcular consumo da família de até mil reais mensais proveniente dos quintais povoados de fruteiras e outras plantas; outras que querem beneficiar para não perder nada do que produzem e para isso já investiu em balança, freezer; há ainda as que dizem identificar os lucros e se permitirem investir em cuidados como fazer a unha, cuidar do cabelo, etc, inclusive gerando renda para outras mulheres da comunidade que fornecem esses serviços.

A própria Aidraiane contabiliza inúmeros resultados para sua família. Ela passou a produzir junto ao esposo e filhos uma variedade de espécies no terreno atrás da casa. Só ervas medicinais ela possui hoje 27 tipos, deixando de comprar remédios químicos em farmácias, além de ter muito tempo que não vai à feira, pois cultiva boa parte do que antes comprava. De acordo com os dados da pesquisa, as plantas medicinais constam dentre os principais produtos que são também consumidos, doados e trocados, seja “na sua forma in natura e também na forma chás, xaropes e garrafadas”.

A ACR e agricultora, que também é mãe, ainda comemora outro feito: após o aumento dos cultivos, ela destinou uma parte do quintal para ser cuidada pelo filho de 14 anos. Uma forma dele deixar um pouco de lado o celular, uma vez que já estava viciado no jogo Free Fire, que tem prejudicado muitos adolescentes. “Somado a isso, ele já vai aprendendo a gerir a produção e ter a própria renda, que já guarda planejando comprar um transporte”, conta feliz a mãe.

O trabalho das/dos ACR’s, em muitos casos, passa também por preencher as cadernetas para as agricultoras que não sabem ler e escrever, uma vez que 3,77% das mulheres que receberam as cadernetas são analfabetas. Esta realidade evidenciou um resultado positivo e também um desafio: muitas agricultoras despertaram o interesse de serem alfabetizadas, porém nem todas têm acesso à educação para jovens e adultos.

Trecho de Cordel produzido por Maria Araújo Maia da Silva, comunidade Vila dos Pauzinhos, município de Campo Formoso (BA)

Anotar tudo - A prática de anotar na caderneta parece algo simples, certo? Mas nem sempre é. Além do analfabetismo e/ou baixa escolaridade, o ato de anotar é mais uma atividade que se soma à rotina sobrecarregada das agricultoras, por isso nem sempre é possível priorizar. Além disso, e talvez mais relevante, é a cultura de não registrar as chamadas miudezas, não considerar o que, aparentemente, não gera renda.

A educadora financeira Artenia Almeida, que tem focado seu trabalho em atendimento à mulheres, explica que isso decorre também do fato de que “não fomos ensinadas sobre educação financeira”, por isso não é comum a prática de valorizar a renda não monetária ou o simples ato de registrar, calcular, avaliar. Algo que, para ela, pode ser revertido com formações, especialmente, quando se olha para os números gerados pelo que foi anotado.

“Quanto não anota, é como se não tivessem resultados, porque não se ver”, provoca Artenia. Anotar, portanto, é o primeiro passo para que as mulheres tenham consciência do que geram, do valor do seu trabalho, para em seguida terem a chamada autonomia financeira, onde vão saber administrar o próprio dinheiro, ter liberdade de escolha do que comprar e com isso aumentar a auto estima, aponta a ela.

Outro aspecto que Artenia problematiza é a relação com o patriarcado, onde predomina ainda a ideia de que só o homem sabe lidar com o dinheiro, com as negociações. Esta realidade é bastante comum no meio rural, onde muitas mulheres criam animais e/ou produzem, mas os homens da família é que vendem a produção. A pesquisa tem mostrado que as cadernetas têm ajudado a quebrar essa visão machista e opressora.

ATER para mulheres - Para Elizabeth Siqueira, um desafio crucial é a implementação de uma política de Ater “que adote a caderneta mas que tenha um assessoramento técnico permanente, para assim mostrar a força dessa ferramenta para uma política de assistência técnica. Por isso, precisa executar, refletir, envolver agricultoras, governos, universidades, para demonstrar efetivamente que essa ferramenta veio pra ficar,” defende.

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