racismo e violência contra a mulher
29.11.2021
Vítima de violência, jovem quilombola se libertou a partir da formação política e independência financeira
História de vida de uma jovem quilombola baiana é o fio condutor para despertar sobre a importância de aspectos como autonomia financeira e formação política para superar a violência contra a mulher

Voltar


Por Érica Daiane Costa | ASACom

A jovem Laianne passou a participar de formações e encontrar janelas e portas para ressignificar sua história | Foto: Arquivo pessoal

“Foi daí que eu cresci. (…) Voltei pra comunidade, comecei a participar dos movimentos da comunidade, ocupar um pouco minha cabeça e abrir um pouco mais a mente. Hoje me sinto uma mulher bem mais empoderada, uma mulher totalmente independente,” conta uma jovem quilombola ribeirinha do Rio São Francisco no município de Juazeiro (BA). Começar a contar a história de uma mulher vítima de violência com um relato de superação é motivo de celebração em um país que a cada seis horas e meia registra um feminicídio, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Esta celebração ganha ainda mais força na reta final do Novembro Negro e em pleno período de 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher, uma vez que trata-se do relato de uma mulher negra, jovem e com origem no meio rural. Segundo as estatísticas, as mulheres negras são as que mais sofrem violência doméstica no Brasil, são as maiores vítimas de homicídio e feminicídio e também as que mais denunciam agressões. O Atlas da Violência, produzido pelo Ipea e pelo FBSP e publicado em setembro deste ano, revela que a taxa de mulheres negras assassinadas segue maior que a de não negras, considerando que em 2009 o percentual de mortalidade de mulheres negras era 48,5% e subiu para 65,8% atualmente, enquanto os números de não negras estão abaixo disso ao longo desses 11 anos.

A jovem quilombola Lindsey Laianne Barbosa, de 27 anos, vitoriosamente, não conta nessas estatísticas, mas não escapou a uma vida marcada por diversos tipos de violência. Natural da comunidade Quilombola de Alagadiço, área rural de Juazeiro, hoje ela se reconhece uma mulher negra empoderada, independente, e diz não ter vergonha de contar o que viveu, porém reconhece os diversos traumas que carrega e as sequelas, a exemplo da ansiedade e o medo de viver relacionamentos afetivos.
Aos 15 dias de nascida, Laianne foi afastada de sua mãe, que precisou fugir do esposo agressor. Criada com a vó materna, o contato que tinha com o pai não deixou boas lembranças, pois ele, revoltado com a separação com a mãe da criança, a espancava, fazendo com que ela crescesse com medo do próprio genitor. Das memórias da infância, ela carrega a cena de um chute que o pai deu em um contato com a mãe e a voz da mãe dizendo que se afastou dela ainda bebê para continuar viva.

A adolescência chegou e antes de passar pra outra fase da vida, Laianne Lindsey casou. Tinha 15 anos e o esposo, 18. A família logo cresceu com a chegada de um filho. Aos 17 anos veio uma menina, hoje com 10 anos. “Eu botei na minha mente que eu queria que os meus filhos vivenciassem algo diferente daquilo que eu não tive, que foi a presença de um pai e de uma mãe”, pensava a jovem mãe.

Para ela, na época, ela não enxergava a relação como abusiva, porém, hoje olha pra trás e é capaz de citar vários tipos de violências que viveu na relação com o pai das crianças, muitas delas vivenciadas por diversas mulheres, mas que não as identificam por serem naturalizadas pela sociedade machista e patriarcal. “Eu não podia trabalhar, porque eu estava procurando motivo pra ficar fora de casa; eu não podia botar um short jeans, porque os vizinhos iam ficar olhando; eu não podia cortar meu cabelo porque ele gostava do meu cabelo grande”, relembra. “Quando eu engravidei da minha filha (…) ele me deu um chute na minha barriga. Pra mim aquilo ali foi o fim, mas como eu era muito jovem (…) aguentei”, relata Laianne.

Cinco anos após esse episódio, a separação havia se consumado. Com esperança de viver um relacionamento livre de violências, a jovem quilombola passou a viver a experiência de uma relação homoafetiva. Ela acreditava que, com uma pessoa do mesmo sexo, tudo poderia ser diferente do que sua mãe e seu pai viveram e do que ela passou com o ex companheiro. Mas o destino mais uma vez colocou-lhe numa situação de opressão e ela viveu dois anos intensos de violência ao lado de outra mulher.
Todas essas formas de agressão relatadas pela sertaneja, só reafirmam o machismo que ainda predomina na maior parte dos relacionamentos conjugais. Os diversos debates e produção de conhecimento sobre o tema atribuem isso ao patriarcado, um sistema social onde os homens exercem poder sobre as mulheres, o que acaba sendo reproduzido também por alguns casais homossexuais, pois tanto os homens quanto as mulheres, de um modo geral, ainda são agentes de manutenção deste sistema opressor forjado ao longo dos séculos.

Associado à violência de gênero, Lindsey Barbosa, viveu também na pele o racismo. Essa conclusão, porém, é algo que ela vem fazendo aos poucos, à medida que reflete sobre tudo que viveu a partir de um olhar mais crítico que hoje possui. Apesar de não ter sofrido racismo diretamente, hoje ela já considera que sua cor foi pano de fundo para algumas situações de violência vivenciadas. Para sair dessa relação, onde sofreu violência física, moral e psicológica, foi necessário medida protetiva, noites de medo, contudo muitos aprendizados.

Reencontro - Apesar da origem rural e do frequente contato com a comunidade de Alagadiço, Laianne viveu todas essas experiências na cidade. Mas, nesse momento da vida em que precisou se libertar de mais um relacionamento abusivo, ela encontrou na comunidade quilombola seu refúgio, da mesma forma que as negras e negros fugiam da escravidão e se aquilombavam no meio do mato. Foi participando de palestras, cursos, eventos na comunidade que ela descobriu a força que tem, conta ela orgulhosa da mulher independente que vem se tornando.

Laianne hoje vive um reencontro com sua origem, seu povo e com ela mesma. Ela planeja cursar ensino superior, já que só estudou até o ensino médio. A partir das atividades que ela passou a vivenciar dentro e fora da comunidade, se reconectou com suas raízes e passou a ressignificar a sua história. “Comecei a participar mais dos eventos da comunidade, entender sobre o que era ser mesmo quilombola, a minha origem, tentar entender a ancestralidade”, compartilha.

Em 2019, a jovem esteve presente no Semiárido Show, em Petrolina (PE), evento em que se discute a Convivência com o Semiárido e foi celebrado os 20 anos da ASA

Quando as coisas começaram a mudar na vida de Lindsey, ela foi contemplada pelo Programa Minha Casa, Minha Vida, o que a permite viver alternando entre o apartamento na periferia de Juazeiro e a comunidade, que fica a uma distância média de menos de 10 km. Em Alagadiço, ela desenvolve várias ações de militância e trabalha como Agente Comunitária Rural (ACR) do Projeto Bahia Produtiva, executado pelo Governo da Bahia. Antes deste trabalho, a jovem já havia acessado a própria renda trabalhando no comércio da cidade.“Na realidade, a minha independência, o fato de começar a trabalhar, fez com que eu não fosse mais submissa. (…). Quando a gente não trabalha, a gente depende muito daquela pessoa e dificulta muito botar um ponto final no relacionamento”, reconhece.

A autonomia financeira é um elemento sempre citado por mulheres como motivo central de superação em situações de violências. Contudo, há outro aspecto essencial para que essa libertação aconteça, a tomada de consciência. Para Laiane esses dois elementos foram fundamentais e foi decorrente de um processo de formação política vivenciado pela mesma a partir da intervenção de outras mulheres na sua comunidade de origem. “O meu empoderamento mesmo, como mulher, me colocar mesmo no meu lugar, dizer: ‘não, eu não preciso tá passando por isso, eu não aceito isso na minha vida e não quero isso’ foi a partir do momento que começou a ter os eventos sociais na comunidade”, conta a jovem.

A independência de Laianne andava de mãos dadas com a da sua comunidade, Alagadiço. Enquanto a jovem se empoderava, a comunidade conquistava o seu reconhecimento oficial como quilombola. Alagadiço hoje é uma das três comunidades reconhecidas como quilombola no município de Juazeiro, conquista esta que contou com o apoio de projeto de extensão da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e de gestões anteriores da Prefeitura de Juazeiro, governos do PCdoB e do PT.

“Hoje eu sou uma das lideranças da comunidade de Alagadiço (…). Ah! Eu acho muito gratificante quando chego num lugar e alguém me reconhece e diz: ‘olha Lindsey, da comunidade quilombola de Alagadiço, ela é liderança de lá’. Hoje eu me sinto uma mulher que empodera outras mulheres”, festeja Lindsey Laianne.