Convivência com o Semiárido
13.10.2022
Lições da convivência: um olhar sobre os ensinamentos das famílias e comunidades

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Por Marcos Jacinto - Coordenação Executiva da Articulação Semiárido Brasileiro - ASA

Foto: Manuela Cavadas

Quando a ASA, há 20 anos, lançou-se no desafio de tecer um novo olhar sobre o semiárido brasileiro e construir uma nova narrativa que dialogasse com as experiências, os conhecimentos, os modos de vida e o protagonismo dos povos da região, sabia-se que não seria uma tarefa fácil. Sobretudo, pelo fato de que a proposta pensada rompia com o paradigma histórico do “combate à seca”, secularmente presente no semiárido e que levou milhares de famílias a deixarem suas terras e acreditarem que esse local era inviável e impossível de se viver dignamente.

Vinte anos se passaram, foram muitos os desafios enfrentados, muitas conquistas asseguradas e, acima de tudo, a certeza de que pouco teria sido feito se a centralidade da ação não estivesse nas pessoas e no conjunto das experiências e saberes acumulados e desenvolvidos por elas. As organizações sociais cumprem um papel importante de apoiar, mas a convivência e as verdadeiras transformações são frutos da atuação das famílias que resistem e lutam para fazer do semiárido um lugar de otimismo e de oportunidades.

Conforme Carvalho e Edler (2003) apresentam a “convivência com a semiaridez como processo de permanente aprendizagem, cujo principal ator é a própria população sertaneja”, as famílias e comunidades têm dito, feito e comunicado muito sobre os avanços da convivência com o semiárido e o impacto que as políticas e programas impuseram na perspectiva do acesso, da garantia de direitos e da qualidade de vida.

Dialogando com o olhar das famílias a respeito dessa realidade, percebe-se o acesso e estoque de água de forma descentralizada e autônoma como elemento central. Sabe-se que um dos grandes desafios históricos das populações do semiárido é o acesso a água para consumo humano e produção de alimentos. Nesse aspecto, a fala das famílias retrata um dos grandes ganhos efetivos assegurados com as tecnologias sociais de captação e armazenamento de água da chuva, que ampliam o acesso e retiram o sofrimento de caminhar “léguas” a procura de água, na maioria das vezes, imprópria para o consumo e insuficiente para as necessidades do núcleo familiar. No semiárido cearense, por exemplo, já são mais de 250 mil cisternas de primeira água para consumo humano implementadas, o que significa 4 milhões de metros cúbicos de água armazenada e gerenciada pelas próprias famílias. Reside aí o sentimento de amorosidade e bem querer delas para com as tecnologias sociais.

Na convivência, resgata-se também a tradição do trabalho coletivo. Ela [A convivência] é construída a muitas mãos e, quando essas mãos se juntam, os resultados são impactantes e o bem-estar extrapola a relação familiar para a social-comunitária, onde o diálogo e a busca contínua por políticas e garantia de direitos ganha força e mobilização social. Isso se materializa através de diversas iniciativas que inserem na vida comunitária o processo de diálogo, articulação e mobilização entre as pessoas que acreditam e resgatam o trabalho comunitário como fonte de inspiração e conquistas coletivas. Os mutirões para construção das tecnologias sociais diminuem as dificuldades e fortalecem os vínculos entre as famílias. Os roçados coletivos garantem a integração para a produção de alimentos e para a preservação das sementes crioulas. As casas de sementes comunitárias são espaços de definição dos rumos das comunidades, mas são também a maior expressão da luta pela preservação da agrobiodiversidade e das sementes nativas que constituem importante patrimônio genético do semiárido.

O reconhecimento da importância e da necessidade de cuidar e preservar a caatinga, é um ensinamento presente na relação com as famílias. A caatinga, enquanto único bioma exclusivamente brasileiro e patrimônio do semiárido, desenvolve papel importantíssimo para o clima, para o cuidado das águas e para a manutenção da vida e das riquezas naturais de grande parte do Nordeste e do Norte de Minas Gerais. Nesse campo, as famílias têm nos ensinado que não é possível conviver com o semiárido sem preservar esse patrimônio, seus bens naturais, os conhecimentos e as culturas das populações que aqui vivem. Esses ensinamentos ocupam lugar de destaque, pois valorizar o que se tem e o que se constrói no semiárido é a chave para avançar na manutenção das conquistas e na garantia da ampliá-las.

Para além dos resultados físicos, que influenciam diretamente a vida das famílias e se faz presente na fala delas, os resultados simbólicos de impacto indireto são elementos igualmente necessários e estratégicos para a convivência com o semiárido. E, nesse campo, as experiências sistematizadas pelas famílias apontam conquistas valorosas que pavimentam o caminhar da convivência. A negação do combate e a valorização dos ativos do semiárido como fontes de inspiração e aprendizagem para as políticas públicas, talvez seja o maior ganho. No entanto, o sentimento de pertencimento e o olhar de que o semiárido é um lugar rico, bonito, cheio de conhecimentos e de vida talvez simbolize o maior avanço social dos últimos anos nesse território. Pessoas que, cientes das dificuldades, constroem oportunidades e lutam para garantir direitos que assegurados geram as condições dignas de vida e bem viver no semiárido.

Nessa trajetória de 20 anos são inúmeras as lições e ensinamentos que foram se agregando à prática e que têm gerado grande capacidade de adequação do trabalho à realidade e às necessidades quotidianas das famílias do semiárido. Embasada pelo pensamento de MARTINS (2004, p.45) ao afirmar que “a educação não pode se dar ao luxo de ignorar o chão que pisa”, a convivência com o semiárido se afirma e se constrói na visão crítica da realidade local e na prática do ouvir e de valorizar o que as pessoas trazem de saberes e experiências, incorporando os aprendizados por meio de ações permanentes de diálogo e intercâmbio entre famílias e organizações sociais. Advém daí a mudança de prática e concepção em relação ao conhecimento, integrando o teórico/acadêmico com o empírico/popular, valorizando-os e colocando-os à disposição dos povos do semiárido.

O caminho para valorizar os processos de formação e de mobilização social tem gerado grandes lições para as organizações, sendo a base dos programas de convivência garantem a formação da visão crítica do semiárido, o empoderamento e o protagonismo das famílias para a disputa da narrativa da convivência.

Da mesma forma, não seria possível chegar aos resultados de hoje sem valorizar, visibilizar e intercambiar as inúmeras experiências desenvolvidas pelas famílias e comunidades. Nessa perspectiva, a comunicação popular tem sido estratégica e ocupa lugar de destaque na atuação da ASA e suas organizações. São os boletins, os banners, os programas de rádio e as publicações instrumentos de reafirmação das conquistas e de mostrar o semiárido para fora.

A visão do semiárido como lugar improdutivo tem se convertido na lógica do semiárido como região produtora de alimentos saudáveis. Mesmo em períodos prolongados de estiagem, como o que passa a região, as tecnologias sociais aliadas a agroecologia e a técnicas de irrigação simplificadas têm possibilitado às famílias a melhoria da segurança alimentar e a geração de renda por meio da produção de alimentos nos quintais produtivos e nos roçados. Produção essa, que ganha cada vez mais mercado nas feiras agroecológicas que também crescem e se consolidam como espaços de comercialização solidárias da agricultura familiar.

O semiárido também é um espaço de protagonismo das mulheres. São elas que garantem a produção nos quintais, que se fazem presentes nas feiras e que cuidam da organização e mobilização da vida comunitária. As mulheres constroem a convivência com o semiárido e, por isso, aprendeu-se a afirmar que sem feminismo não há convivência com o semiárido.

Finalmente, é necessário afirmar que a caminhada ensinou que o semiárido é um lugar de disputa. Disputou-se a narrativa e foi uma luta árdua para a afirmação da convivência, disputa-se a água que está concentrada nas mãos do capital e dos grandes empreendimentos, disputa-se a terra, inacessível para a grande maioria das famílias agricultoras que sonham em produzir e nela viver, disputa-se as políticas e o orçamento público. Neste sentido, entende-se a urgência de avançar no campo da incidência política de forma a assegurar que, os programas e as políticas públicas que mudaram o semiárido brasileiro nas últimas décadas, sejam permanentes e se consolidem para assegurar os direitos necessários às populações que aqui vivem e sonham por direito, permanecer e ser feliz!

É no semiárido que a vida pulsa!
É no semiárido que o povo resiste!