Por Sarah Gonçalves | Cáritas Diocesana de Januária (MG)
O conhecimento dos povos indígenas e tradicionais tem norteado a construção de estratégias de adaptação ao contexto das mudanças climáticas, a partir da sustentabilidade dos territórios e do respeito à biodiversidade. Com o olhar dedicado a essa questão, entre os dias 13 e 14 de agosto, representantes da Cáritas Diocesana de Januária e da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) acompanharam Walter Prysthon, agente da Cáritas França, na visita aos territórios da região do Baixo São Francisco, em Minas Gerais. A iniciativa é fruto da parceria da ASA com a organização francesa para a construção do intercâmbio de saberes e fortalecimento de comunidades resilientes pela transição ecológica justa na América Latina.
O intercâmbio internacional busca intensificar o diálogo entre povos tradicionais latino-americanos, a partir da temática: territórios na defesa do acesso e cuidado à água. Walter Prysthon, encarregado de projetos da Cáritas França na América Latina, explica que essa iniciativa nasce com a proposta de partilhar experiências exitosas de tecnologias sociais entre comunidades que enfrentam escassez de água devido ao impacto de grandes empreendimentos na região e ao contexto das mudanças climáticas.
“A proposta do intercâmbio é fortalecer mulheres e homens para serem atores de transformação social na defesa dos seus territórios tradicionais e na transição ecológica justa”, explica o agente.
A 4ª edição da ação será realizada durante o 1º trimestre de 2025 nas comunidades quilombolas de Croatá e Sangradouro Grande, em Januária, e a indígena Xakriabá, em São João das Missões. Ao refletir sobre a importância da iniciativa, Juliana Bavuzo, coordenadora do Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC) e representante da ASA, pontuou que historicamente a troca de saberes entre povos tradicionais tem sido uma estratégia de resistência desse grupos e uma metodologia de trabalho da rede na construção da convivência com o Semiárido.
“Para nós, da ASA, esse intercâmbio com comunidades brasileiras, peruanas e bolivianas é muito importante porque reforça os laços dos povos da América Latina e mostra a importância de unir conhecimentos tradicionais e conhecimentos científicos que mostram alternativas de resistência ao modelo predatório da biodiversidade”, explica.
Valmir Lopes, agente da Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais, destaca que a iniciativa é muito importante para a valorização da cultura dos povos e comunidades tradicionais. Ele reflete que a relação com o rio São Francisco une as lutas de todos os territórios que vão participar do intercâmbio de saberes.
“Há muito conhecimento em cada uma dessas comunidades e é fundamental construir essas pontes com outras comunidades da América Latina. Além das experiências das visitas, o intercâmbio irá construir um documento base sobre a luta dos povos tradicionais pela defesa das águas e das florestas”, afirma.
A diversidade socioambiental do Alto Médio São Francisco
Ao longo de 31.150,94 quilômetros (km²), a região do Médio do Rio São Francisco é formada pela diversidade sociocultural dos povos indígenas, quilombolas, veredeiros, vazanteiros e geraizeiros. Das margens do Velho Chico até o Peruaçu, quem anda por esse território pode ver a transição do Cerrado para Caatinga e para Mata Atlântica. Ali, o modo de vida desses povos tradicionais tem mostrado alternativas de convivência com a biodiversidade, a partir de práticas sustentáveis.
Quilombo de Croatá
Com quase meio metro de comprimento, o tambor roncador é feito através de um tronco de árvore. Só é possível tocá-lo em duplas, uma pessoa senta e toca a percussão enquanto outra toca o bumbo do tambor com água. Enedina Silva conta que o instrumento garante a alegria e a batucada durante as festas no Quilombo do Croatá, em Januária. Quilombola e vazanteira, ela nasceu e cresceu às margens do Velho Chico, no Norte de Minas. Desde criança, ela aprendeu que era preciso plantar nas barrancas das vazantes respeitando o ciclo das águas, durante os tempos de baixa.
Foi a partir desse saber tradicional que ela criou os seus quatro filhos com alimentos nutritivos e sem veneno. Entretanto, hoje ao falar sobre o rio São Francisco, ela faz um alerta:” a gente tá vendo que o rio está doente, tem muito lodo na água, está difícil achar peixe. A gente precisa deixar o rio respirar e lutar contra a poluição que tem sido jogada nele, porque isso contamina a terra das vazantes”.
Segundo Enedina, a única alternativa de água potável do território se dá por meio da cisterna de captação de água de chuva com capacidade de 16 mil litros, implementada pelo P1MC da ASA. Ela reflete que é importante lutar pela preservação das águas e das matas, porque só assim a comunidade terá um futuro no território.
Quilombo de Gameleira
“Com 60 anos, eu sigo na luta pela defesa do nosso território, porque amanhã eu quero que meus netos vejam a natureza de pé”, afirma o quilombola Sinvaldo Paixão. Há várias gerações, a família de Sinvaldo vive no Quilombo Gameleira, em Januária. Ali, cerca de 3 mil famílias lutam pela titulação do território que está localizado à margem esquerda do rio São Francisco.
Terra Indígena Xakriabá
“A natureza nos ensina viver e a respeitar o ciclos, precisamos aprender a compreender o tempo de crescimento do alimento não dá para acelerar isso e achar que não vai ter impacto em nossa saúde”. Essa compreensão de cuidado com a terra e o alimento tem mobilizado a comunidade Xakriabá para atuar em projetos de cultivo de forma coletiva.
Adailton Cavalcanti, agente de saúde e liderança do povo indígena, relata que durante muitos anos a comunidade vivenciou períodos longos de estiagem, situação que afetava os modos de vida de todos. De acordo com ele, a recuperação ambiental tem sido uma das frentes de resistência. Parte desse processo está sendo construído por meio da Associação de Agricultores Familiares.
“Nós estamos doando kit de horta nas aldeias, oferecendo apoio para quem quer plantar. Hoje, a partir da nossa produção, estamos fornecendo alimentos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), vendemos feijão catador, polpa de fruta, milho e melancia”, afirma. A iniciativa além de gerar renda para as famílias agricultoras, oferece alimentos de qualidade para além das fronteiras da aldeia.
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