Com a cultura popular de estoque de sementes, as famílias agricultoras do Semiárido brasileiro construíram, ao longo dos anos, uma verdadeira reserva da agrobiodiversidade. As sementes crioulas, que podem ser vegetais ou animais, também são as sementes da fartura, da partilha, da vida, da paixão, da gente, da terra, da tradição, da liberdade, da resistência. Seus nomes locais só refletem a importância concreta da manutenção e da continuidade da vida e da comunidade no campo.
Frente às ameaças que vêm dos setores privados, com o avanço da transgenia e do uso de agrotóxicos, e do setor público, que se voltou totalmente para os modelos do agronegócio com o novo governo, não é possível esperar o próximo golpe contra o ecossistema da agricultura familiar. Se resistir é verbo que sementeia as famílias, então é de resistência que se baseiam os encontros estaduais promovidos pelas ASAs estaduais por todo o Semiárido brasileiro, com apoios e parcerias que se movem junto das agricultoras e agricultores.
"Um ponto forte dos encontros estaduais é o debate da ação de sementes enquanto política pública", afirma Antônio Barbosa, coordenador do Programa Sementes do Semiárido da ASA. "Todos os eventos estaduais têm feito diálogo com os governos de seus estaduais. Alguns têm convidado, inclusive, representações da Conab [Companhia Nacional de Abastecimento], outros do governo federal. Mas a estratégia do programa agora é discutir a lei de sementes, onde já existe a lei, para fazer com que ela seja efetiva e, onde não tem lei, fazer com que se apresente uma proposta de projeto de lei", complementa ele.
Segundo Barbosa, a intenção é avançar na construção de um programa estadual que estabeleça um percentual mínimo de 30% para comprar sementes da agricultura familiar a exemplo do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Nos encontros estaduais, a pauta contra a transgenia e os agrotóxicos é outro assunto recorrente. Como explica a equipe técnica do Sementes do Semiárido: "Durante a execução do programa, cada estado realizou cerca de 100 testes de transgenia para comprar as sementes de milho que iriam compor os bancos. As sementes contaminadas foram armazenadas para testes laboratoriais. As sementes que não estavam contaminadas foram criadas cópias de segurança, formando uma coleção de sementes livres da transgenia e adaptadas às condições locais de cultivo das famílias agricultoras.”
Ainda segundo a equipe do programa, “os encontros ajudam as famílias a saírem do isolamento e permite os guardiões e guardiãs percebam como suas ações garantem a proteção da agrobiodiversidade e do patrimônio genético.”
Nove dos dez estados do Semiárido brasileiro foram palcos destes momentos em que as sementes crioulas e sua importância e significado estavam no centro das atenções. Os encontros regionais foram realizados após um momento nacional, no início do ano, em Maceió/AL.
Em Alagoas, frente a essa retrogradação e da falta de políticas para agricultura familiar, as e os participantes do 8º Encontro Estadual de Sementes Crioulas, da Articulação Semiárido Alagoano (ASA) publicaram uma carta de repúdio. O texto inicia com a rejeição à liberação irresponsável de dezenas de substâncias venenosas, muitas com classificação de toxicidade extremamente alta. Apenas em 2019, somam 169. Mais de um por dia até a data da última liberação.
Ainda segundo os alagoanos, as ameaças não param por aí. Na carta, eles também repudiam “o volume de sementes e de recurso e a estratégia de compra e distribuição de sementes pelo Programa de Sementes com o uso de sementes híbridas, produzidas de forma convencional, distribuída sem acompanhamento, monitoramento e análise de resultados.”
O destaque do documento é para o avanço da transgenia que avança pelo canal do sertão - um dos projetos que usa a água do Rio São Francisco -, aproveitando-se dessa dinâmica pública de ofertar sementes sem respeito à diversidades de variedade e de origens.
Em maio, também aconteceram encontros em Pernambuco, Minas Gerais e Sergipe. Neste último, o evento reforçou o debate sobre a disputa e os conflitos entre o agronegócio e a agricultura familiar.
Em Pernambuco, o evento foi realizado em Serra Talhada e discutiu também os direitos das mulheres dentro de uma política voltada à preservação das sementes. No encontro pernambucano, a maioria das pessoas (60%) eram agricultoras. As falas pautaram a necessidade da mulher lutar e ocupar espaços decisórios e de maior igualdade dentro das associações comunitárias.
Em Minas, agricultoras e agricultores e representantes das organizações que executam o programa Sementes do Semiárido trouxeram outra pauta em comum e que é uma dificuldade: o acesso à água. Não o acesso pela escassez de chuvas, mas pelo seu contingenciamento e exploração, muitas vezes, violenta pelos grandes empreendimentos de monoculturas. Na parte do Semiárido no Sudeste do país, um dos monocultivos que mais consome água é o plantio do eucalipto. O encontro ainda destacou a importância de lutar por uma política pública estadual através de estratégias de incidência política.
Na Bahia, o evento foi realizado no final de abril, em Vitória da Conquista, e pautou a implantação de uma política de sementes, além da promoção da compra de sementes das mãos das agricultoras e agricultores, incentivando a produção crioula.
No Ceará, em meados de maio, o município de Canindé acolheu o evento que pautou a importância da preservação das sementes para a convivência com o Semiárido e para a alimentação saudável.
O encontro do Piauí veio na sequência e reuniu agricultoras e agricultores que estão associadas a mais de 200 Casas de Sementes crioulas comunitárias que existem no estado, além de representantes do Semiárido maranhense.
Nesta semana (4 a 6), está sendo realizada a 8ª Festa Estadual das Sementes da Paixão, no município de Soledade, no Cariri Paraibano. E ainda neste mês, entre os dias 18 e 19, haverá o evento do Semiárido potiguar.
Para a equipe do programa, “esses encontros contribuem para dar visibilidade às experiências de agricultores e agricultoras em seus territórios, contribuindo para fortalecer de forma dinâmica os próprios bancos. Isso oportuniza o encontro de guardiões e guardiãs com diversas experiências. O nosso desejo é que as famílias tenham não só autonomia no insumo sementes, mas também autonomia política e organizativa.”
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