Por Igor Carvalho -repórter
No semiárido nordestino, que passa por nove estados, um quarto das 22 milhões de pessoas que lá vivem já são atendidas pela tecnologia das cisternas, sistema impulsionado em parceria do governo federal com organizações sociais. A região, que há séculos vive sob a cruel estética da seca, aprendeu que não adianta combater o destino imposto pela natureza, sendo necessário se estruturar para reduzir os danos de sua inabalável intervenção. Assim não fez São Paulo.
A crise hídrica
Passamos por Copa do Mundo e eleições, no ano de 2014. Um assunto foi comum nos dois eventos, que mobilizaram e paralisaram o país: a crise hídrica paulista. O tema passou pela preocupação com a “sede” de turistas, esportistas e jornalistas, chegando à politização da escassez de água, quando o presidenciável tucano Aécio Neves tentou imputar à presidenta Dilma Rousseff (PT) a culpa pelos cortes no fornecimento de água em São Paulo.
Falando em responsabilidades, além da tentativa de federalizar os problemas hídricos locais, o governo paulista segue circunscrevendo as causas da crise a São Pedro, por certo um santo petista, negando o racionamento e permitindo que a crise se amplie.
No princípio do ano, dia 30 de janeiro, Alckmin já negava a possibilidade de um racionamento no estado e garantia o fornecimento de água na capital paulista. “Os reservatórios, como o da Guarapiranga e do Alto Cotia, e outros de várias áreas, estão com quase 100% de sua capacidade, o que é suficiente para o abastecimento da cidade de São Paulo”, afirmou o tucano, já imputando à natureza a culpa quase exclusiva pela crise. “A pior coisa é ter verão sem chuva, com grande consumo de água e ainda perda por evaporação.”
A manutenção da toada das primeiras declarações sobre a crise hídrica foi mantida durante todo o ano e gerou críticas pelo fato do governador estar supostamente negando o racionamento para não prejudicar a campanha eleitoral, que resultou em sua reeleição ao Palácio dos Bandeirantes. A desconfiança a respeito do quadro se tornou certeza com a divulgação, através do Blog do Rovai, do áudio de uma reunião entre Dilma Pena, presidenta da Sabesp, e a diretoria da empresa. Durante o encontro, a dirigente admite que recebeu ordens de “superiores” para não comunicar a população sobre a crise hídrica.
“A gente tem que seguir orientação… A orientação não tem sido essa, mas é um erro. Tenho consciência absoluta e falo para pessoas com quem converso sobre esse tema, mesmo meus superiores, acho um erro essa administração da comunicação dos funcionários da Sabesp, que são responsáveis por manter o abastecimento, com os clientes”, afirmou Dilma Pena.
A divulgação de duas pesquisas ajudaram a desconstruir a tática da negação de Alckmin. O Ibope, em setembro, afirmou que 38% dos paulistanos tiveram interrupção do fornecimento de água nos meses de junho, julho e agosto. No Datafolha, o levantamento apontou que 46% dos moradores da cidade de São Paulo acusava falta constante de água em casa.
A busca incessante por mascarar a crise hídrica teve seu ápice no mês de maio deste ano. O governador encomendou um estudo do Centro Tecnológico de Hidráulica e Recursos Hídricos, tentando fazer parecer ao paulista que a natureza conspirava contra o estado ao apontar que somente a cada 3.378 anos se vive uma estiagem como a atual.
“Não sei de onde eles tiraram isso. Essa informação não procede. A informação que nós temos, com a qual o próprio governo trabalhava, é que o estado já viveu uma crise de escassez de água na década de 50, entre 53 e 54, na mesma proporção da que vivemos hoje. Então, esse número não tem nenhum amparo técnico que o sustente”, afirmou o coordenador da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental, Edson Aparecido da Silva.
Mesmo com negativas constantes de Alckmin e da Sabesp sobre o racionamento, Itu, município a 100 quilômetros da capital paulista, já convive com cortes de água há nove meses. Alguns moradores chegam a ficar dois meses sem uma única gota de água nas torneiras. A situação caótica da cidade faz lembrar algumas vezes cenas de filmes apocalípticos. Os valores de galões de água dispararam. Um galão de vinte litros, que custava R$ 6, subiu para R$ 9. Um caminhão-pipa, com capacidade para 6 mil litros, que custava R$ 350, agora não sai por menos de R$ 800. Comerciantes da cidade narram histórias sobre furtos de água de suas caixas d’água durante a madrugada. Em Franca, cidade do interior paulista, a 400 quilômetros de São Paulo, ainda com racionamento negado pela Sabesp e pelo governo estadual, 56 bairros enfrentam cortes constantes no fornecimento de água.
Com auxílio dos números e depoimentos, a farsa terminou de ser desmontada quando o jornal O Estado de S. Paulo, em sua edição de 6 de agosto, revelou que a Sabesp recomendou o racionamento ao governo paulista no começo de 2014. A medida foi rejeitada por Alckmin. No texto em que faz a recomendação, a companhia, que entregou o documento também ao Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo (DAEE), afirma que a medida precisava ser tomada para evitar “o constrangimento à população”, e conclui que “o rodízio deve ser planejado em face da situação crítica de armazenamento nos mananciais.”
Sobre o principal reservatório do estado, a Sabesp é enfática e faz uma recomendação: “Reduzir a produção do Sistema Cantareira para evitar o colapso dos mananciais e, consequentemente, do abastecimento da Região Metropolitana.”
A previsibilidade da tragédia
É inegável a influência de fatores climáticos na situação de São Paulo. Obviamente que, se a intensidade de chuvas no estado acompanhasse a média histórica, não haveria tamanha escassez dos recursos. Até agosto de 2014, choveu 57,65% do que era aguardado para este ano. Chama a atenção que em janeiro, quando a média histórica de precipitação é de 259,9 milímetros, choveu 87,8 milímetros. Porém, a estiagem paulista era previsível e alertas foram emitidos ao governo paulista. Em 2004, São Paulo era governada por Geraldo Alckmin (PSDB) quando recebeu o primeiro alerta.
A portaria que renovava a outorga do reservatório da Cantareira recomendava: “A Sabesp deverá providenciar, no prazo de até 30 meses, estudos e projetos que viabilizem a redução de sua dependência do Sistema Cantareira, considerando os Planos de Bacia dos Comitês PCJ (rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, que abastecem mais de 73 municípios no interior) e AT (Alto Tietê)”.
As medidas recomendadas na outorga nunca foram seguidas. À época, o governo tucano tinha 30 meses para realizar as obras de expansão recomendadas na portaria. Passados dez anos, nenhuma das determinações foi cumprida. A conclusão da inércia dos governos do PSDB na última década é denunciada em uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal (MPF), em conjunto com o Grupo de Atuação Especial em Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público Estadual. A ação também investiga o quanto a abertura de capital da Sabesp prejudicou o desenvolvimento daquele que deveria ser o trabalho primordial da empresa, o abastecimento.
Desde 2002, a Sabesp vende suas ações na Bolsa de São Paulo e de Nova Iorque. Segundo a ação civil pública, desde 2004 a empresa R$ teria lucrado 12 bilhões, sendo que um terço, ou R$ 4 bilhões, desses recursos foram repassados para as mãos dos acionistas. “Conclui-se, claramente, que em 2012 e 2013 não foram tomadas medidas para proteger o Sistema Cantareira da mais severa estiagem registrada em toda a série histórica. Paralelamente, foram os dois anos nos quais se obtiveram os maiores lucros líquidos da história da companhia e de distribuição de dividendos, valendo observar que, nesse período, o Sistema Cantareira foi responsável por 73,2% da receita bruta operacional da empresa, denotando a superexploração daquele sistema produtor”, afirmam os promotores no texto da ação, de acordo com matéria da revista Carta Capital.
Renato Tagnin é arquiteto, urbanista, especialista em planejamento ambiental e gestão de recursos hídricos. Para ele, a estiagem paulista era previsível e o governo já sabia dessa possibilidade, com tempo suficiente para a realização de obras. “Isso foi previsto e era de conhecimento público. Os serviços meteorológicos já haviam previsto uma anomalia. Mas, independente da anomalia, o sistema está muito ameaçado porque há muito tempo a oferta é muito menor do que a demanda. Mas sobre o período de estiagem, foram diversos os alertas.”
A previsibilidade e a falta de oferta de água, relatadas por Tagnin, são comprovadas por um relatório produzido em 2008 pela Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (Fusp) sobre Sistema Alto Tietê, onde há referências sobre o Cantareira que, segundo a entidade, atendia apenas 65% de sua demanda, mesmo atuando com 110% de sua capacidade. “Considerando as análises apresentadas é possível concluir que há necessidade imediata de ampliação dos sistemas produtores Cantareira, Guarapiranga e Rio Grande para manter a garantia de 95% (de fornecimento)”, explica o relatório da Fusp. Outro alerta emitido, dentro da universidade comandada pelo governo do Estado de São Paulo.
Segundo Tagnin, São Paulo não deveria estar vivendo a atual crise hídrica. “Passa por um conjunto de circunstâncias, mas sem dúvida, a sua maior causa é administrativa. A estiagem existe sim, mas ela expõe uma fratura administrativa gigante, que concorre para esse caos que vive o estado.”
O engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, João Suassuna, concorda com Tagnin, no que tange à responsabilidade da má gestão tucana dos recursos hídricos paulistas. “As autoridades de São Paulo, no meu modo de entender, não têm vivência com um fenômeno meteorológico dessa magnitude. Mas eles deveriam estar preparados, há instrumentos e tecnologia que nos permite prever com facilidade períodos de estiagem. No Norte e Nordeste, o trabalho é feito em concordância com as previsões climáticas, sabemos quanto vai chover no ano e em quais períodos”, afirma o especialista.
“Nós não combatemos a seca, nós convivemos com ela”
Alguns milhares de quilômetros longe de São Paulo e outros milhões de litros mais seco está o semiárido nordestino. Há dez anos, quase a totalidade dos 22 milhões de habitantes dessa região ia dormir com sede.
“Partimos de uma realidade na qual a falta de água é uma realidade histórica. Há famílias que bebem água do barreiro. Para esses povos do semi-árido, a água é um bem precioso. Mulheres chegam a caminhar 15 quilômetros para conseguir uma lata d’água”, afirma Valquíria Lima, da coordenação nacional da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA).
Em uma região de mais de um milhão de quilômetros quadrados, onde chove entre 300 e 600 milímetros por ano, fica difícil imaginar o que pode significar um período de estiagem. Porém, “há municípios em que não chove há dois anos”, lembra Valquíria.
A constante escassez de recursos hídricos transformou a relação do nordestino com o espaço. “Nós não combatemos a seca, porque ela é uma realidade, nós convivemos com ela”, afirma Valquíria. Mudando as palavras, mas se valendo do mesmo sentido, o presidente da Águas e Esgotos do Piauí (Agespisa), José Augusto Nunes, reconhece o novo paradigma. “A estiagem é um bem comum do nosso semiárido, temos é que saber lidar com essa realidade, buscar alternativas.”
Em 2000, uma tecnologia utilizada pela primeira vez há mais de cinquenta anos foi ressuscitada. Começavam a ser instaladas as primeiras cisternas no semiárido nordestino. “No começo o investimento não era alto, ainda eram poucas unidades. De 2003 para cá, sem sombras de dúvida, há uma intensificação desse processo, entendendo a instalação de cisternas como política pública e ampliando o acesso da população à água”, destaca Valquíria, ressaltando que a ASA já construiu 528 mil cisternas no semi-árido nordestino.
As cisternas, com capacidade para armazenar 16 mil litros de água, são construídas em parceria com as comunidades. “O processo de produção e instalação é mutirão. Dessa forma, as famílias podem aprender a tratar a água e produzir suas próprias cisternas”, explica Valquíria.
Há dois tipos de cisternas: para consumo humano, somente para beber e cozinhar; e um outro modelo utilizado para produção de alimentos, irrigando lavouras. A ASA construiu 68.549 cisternas como a segunda. As cisternas são possíveis para a população do semiárido graças a uma parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social. Porém, outras 500 mil foram entregues pelo Ministério da Integração Nacional. Desta forma, a parceria do governo federal com a ASA possibilitou a construção de um milhão de cisternas, que atendem aproximadamente cinco das 22 milhões de pessoas da região.
“Aqui o valor da água se aprende desde muito pequeno, por conta da falta dela. Quando você tem uma cisterna no seu quintal, é uma benção sem tamanha”, afirma Valquíria.
Seca paulista e a cisterna
O planejamento em relação ao semi-árido nordestino, que contrasta com a má administração paulista, pode servir de parâmetro para as futuras gestões. Isso porque, para especialistas, a tecnologia das cisternas poderia ser aplicada em áreas urbanas.
“Armazenamento de água de chuva, para uso em períodos de escassez, é uma medida inteligente, antes de tudo. É possível a utilização das cisternas em São Paulo, desde que adaptadas à realidade das áreas urbanas”, afirma Tagnin.
Para Valquíria a medida também é possível. “Com muito mais recursos e possibilidades, São Paulo entrou nessa crise, imagina se houve planejamento e reutilização de água da chuva. Mas teria que haver uma adaptação.”