Segurança Alimentar
08.08.2019
“A construção das políticas do Estado devem integrar a dimensão da segurança alimentar e nutricional”, diz Naidison Baptista, da ASA

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Por Catarina de Angola e Hugo de Lima

Foto: Andre Telles / Fonte: DW Brasil
Em um momento em que os índices de fome e pobreza aumentam no Brasil, em julho, o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) definiu coletivamente, em um processo de mobilização da sociedade civil, a convocação da Conferência Nacional, Popular, Autônoma: por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional a ser realizada no primeiro semestre de 2020. Reafirmando os lemas: “Sem democracia não há Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional” e “Comida de Verdade, no Campo e na Cidade”, a convocatória alerta, além do aumento da pobreza e da fome, para os graves ataques aos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHESCA) que tem acontecido no País.
 
A proposta da conferência é a construção de um processo preparatório em etapas, de forma ampla e descentralizada, com mobilização, articulação e formação, que culminará em uma grande atividade no primeiro semestre de 2020. Nesse contexto, conversamos com Naidison Baptista, da coordenação executiva da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) pelo estado da Bahia, que foi enfático: “O atual governo brasileiro não está preocupado com a questão da fome”. Na conversa, ele resgata o papel do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) na efetivação de políticas públicas de SSAN, em especial para o Semiárido e para a agricultura familiar, e a mobilização da sociedade civil nos estados para garantia dessas políticas.
 
Asacom - Um governo que afirma que não há brasileiros e brasileiras que passam fome está no caminho certo para pautar qualquer política ligada à alimentação?
 
Naidison Baptista - Os governos todos atuam a partir de estratégias políticas que a eles parecem mais condizentes com a realidade nacional. O atual governo brasileiro não está preocupado com a questão da fome. O presidente da República nega a existência da fome, o ministro da Cidadania nega a existência da fome. Então, se a fome não existe, o governo não vai adotar medidas estratégicas de combate à fome. Isso a gente olha num conjunto de ações do próprio governo, como na diminuição de recursos para a agricultura familiar; na diminuição dos processos de assistência técnica à agricultura familiar; na negação de qualquer processo de acesso à terra para agricultores familiares, para quilombolas, para indígenas; no incentivo, que está se vendo aí aqui e acolá, da utilização das terras indígenas para fins outros que não sejam a vida, a produção de alimentos e a sobrevivência dos próprios indígenas. Então, é um conjunto de elementos que mostram que o governo não está centrado nessa perspectiva. Obviamente, ele não vai centrar numa política voltada para a alimentação. Então, o combate à fome e ao incentivo a processos de alimentação saudável e adequada não estão na pauta do governo, ele não vai perseguir essa questão.
 
Asacom - Por que mobilizar uma conferência nacional, autônoma, democrática e popular em defesa da Soberania e da Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) é importante na atual conjuntura?
Naidison - Na atual conjuntura, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) foi efetivamente extinto, depois recriado e votado no Plenário da Câmara e do Senado. Mas o governo o está tratando como se ele tivesse sido extinto. Então, efetivamente, o CONSEA não tem condições de funcionar. Dentro desse contexto, a convocação da Conferência Nacional de Segurança Alimentar, que foi convocada pelo CONSEA ainda no final do ano passado, na gestão do governo Temer, deixou de existir, e pelos processos governamentais a conferência não existirá. Então, organizações da sociedade civil, que atuam no campo da alimentação, da segurança alimentar e nutricional da população, avaliam que deixar simplesmente de realizar uma conferência porque o governo não deseja que ela seja realizada não seria uma boa opção. Então, esse conjunto de organizações, entre as quais está a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), resolveram mobilizar uma Conferência Nacional, Popular, Autônoma: por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, no Brasil. Ou seja, essa conferência a ser feita com nossas forças, com nossos esforços, a partir de nossas possibilidades e do nosso modo e atuar. Por isso a gente fala que é autônoma, democrática e popular, ela tem um papel estratégico, ela tem um papel fundamental no Brasil de hoje. Ela tem o papel de chamar atenção, que mesmo que o governo negue, a fome está aí. Ela tem o papel de mostrar que há inúmeras iniciativas importantes, significativas, fortes do ponto de vista político e do ponto de vista do que está acontecendo nas comunidades e nos estados, inúmeras iniciativas que mostram que a soberania e a segurança alimentar e nutricional não saíram da pauta. Mas ela também precisa recolocar ou reafirmar a importância da segurança alimentar e nutricional e colocá-la mais uma vez na pauta do país, na pauta do Brasil. É uma conferência que é nossa, é das organizações da sociedade civil. Nós é que a vamos gerir, nós é que vamos decidir como ela acontecerá e nós vamos dar a ela um cunho político forte de que a fome está voltando, que alimentar-se é um direito de todos os cidadãos e cidadãs e que há iniciativas bonitas e que nós devemos multiplicar essas iniciativas. Porque nós não podemos perder de vista que a construção das políticas do Estado devem integrar a dimensão da segurança alimentar e nutricional. É por isso que nós queremos e vamos fazer essa conferência com essas características.
 
Asacom - De fundamental importância na construção das políticas públicas ligadas ao tema, o CONSEA segue desativado pelo governo. Em especial para o Semiárido, qual o impacto do fim do conselho?
Naidison - O CONSEA, embora desativado oficialmente pelo governo, continua muito e muito ativo. Porque, na parte da sociedade civil, ele é composto de militantes, de pessoas que sempre deram seu sangue, sua luta, e que jogam sua perspectiva de vida na construção da segurança alimentar e nutricional. Essas pessoas continuam fazendo isso em suas comunidades, continuam ocupando espaços nos CONSEAs estaduais, continuam nos espaços de suas organizações atuando na perspectiva da segurança alimentar e nutricional. Agora, não resta dúvida que a gente não despontar de estrutura e da possibilidade da inter-relação com o governo federal na construção das políticas de segurança alimentar e nutricional faz muita falta e cria um impacto negativo. Para o Semiárido, o CONSEA nacional foi estratégico e fundamental. Por lá, passaram e foram aperfeiçoadas políticas muito importantes para a segurança alimentar e para a convivência com o Semiárido. Como a política das cisternas de consumo, das cisternas escolares, das cisternas de produção, política de sementes, política do crédito agrícola, a política da assistência técnica agroecológica, o  Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da agricultura familiar e a Lei e o monitoramento da prática da alimentação escolar. Então, o CONSEA teve uma responsabilidade muito forte da construção da política de convivência com o Semiárido, em conjunto com a ASA e outras organizações. Formalmente a gente perde esse espaço, porque agora, se formos discutir com o governo determinadas questões do Semiárido, nós vamos discutir ponto a ponto, questão a questão, um pouco esfaceladamente e isso tem questões negativas. Mas queria reafirmar que o conjunto das políticas continua vivo e que, especialmente a ASA, e algumas outras redes do Semiárido continuam batalhando nas perspectivas da convivência com o Semiárido.
 
Asacom - Há movimentos internacionais de apoio e/ou incidência política para denunciar a descontinuidade das políticas federais de alimentação adequada?
Naidison - Existem vários espaços internacionais onde se pode debater e denunciar a descontinuidade da política de alimentação adequada. Há iniciativas das mais variadas, entre grupos que se relacionam com organizações financiadoras não governamentais na Europa, como a Misereor, que enviam para lá ou para as comunidades envolvidas dados, elementos, reflexões sobre a descontinuidade da alimentação adequada no Brasil. Há denúncias a nível da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), da Organização das Nações Unidas (ONU), há redes internacionais que trabalham nessa perspectiva. Então, nós não estamos isolados. Tanto o que a gente faz de bom como o que acontece de destruição e de descontinuidade no Brasil está sendo projetado para um nível internacional.
 
Asacom - E localmente, o que estados estão fazendo para construir caminhos às políticas de SSAN?
Naidison -  Na maior parte dos estados, os Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional continuam funcionando. Curiosamente a maior parte dos estados, sejam eles do Sul, do Norte ou do Nordeste estão planejando suas conferências estaduais de segurança alimentar e nutricional e que terão como momento preparatório conferências regionais e/ou municipais. Isso a gente escuta e vê documentos a partir de vários estados, e há um processo interessante que os presidentes e presidentas de conselhos estaduais constituíram uma coordenação entre eles, que faz o papel de circular informações, textos, materiais,  notícias que possam alimentar as perspectivas da luta da segurança alimentar e nutricional. Praticamente todos os estados, inclusive aquele onde o atual governo teve maioria nas eleições, estão planejando suas conferências. Isso é muito importante, porque significa dizer que a parte do sistema de segurança alimentar e nutricional nos estados e municípios continua em funcionamento. Naturalmente é um funcionamento que depende de um apoio que não vai ter. Então os presidentes e essa coordenação dos conselhos terão que suprir o papel que era desempenhado pelo CONSEA nacional, que era de orientar, trabalhar materiais enviar subsídios, refletir políticas, etc. Isso terá que ser feito numa coordenação coletiva nos conselhos de segurança alimentar. Mas é uma notícia muito boa que esses conselhos estejam programando ou já trabalhando na execução de suas conferências. E os conselhos estão debatendo a Conferência Nacional, Popular, Autônoma: por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, e querem um espaço nela para veicularem, debater as questões que nasceram ou estão nascendo nos seus respectivos estados. É uma coisa interessante que a gente quer dizer assim: cortaram a cabeça, mas o corpo do processo de segurança alimentar está criando uma outra cabeça e está em busca de todas as medidas para continuar vivo nesse processo da construção da segurança alimentar no Brasil.