ARTIGO
01.04.2024
Processo de Desertificação: conceito, características e causas
As causas que provocam a desertificação estão relacionadas às atividades das pessoas, como as práticas agropecuárias extrativistas

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Por Aldrin Martin Perez-Marin

À esquerda, uma área de caatinga já degradada pelo pastoreio; à direita, uma área de restauração pela técnica de pousio | Foto: Agência UFC/Reprodução

Como podemos definir o processo de desertificação?

No âmbito da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (UNCCD), a desertificação é definida como um processo de degradação das terras que ocorre essencialmente nas áreas que se situam nas zonas áridas, semiáridas e sub-úmidas secas — essas entendidas como sendo “todas, com exceção das polares e subpolares, nas quais a razão entre a precipitação anual e a evapotranspiração potencial está compreendida entre 0,05 e 0,65”. Esse processo é resultado das variações climáticas e das atividades humanas.

No Brasil, esta definição se restringe à uma parte da região Nordeste e do norte de Minas Gerais. Ainda assim, nas outras regiões do país, pode haver processos de degradação da terra semelhantes, mas no âmbito da UNCCD eles não podem ser denominados de desertificação porque não se enquadram na Convenção. Desta forma as áreas suscetíveis a desertificação (ASD) brasileiras compreendem 1.340.863 km2, incluindo 1.488 municípios, localizados em dez estados da região semiárida do nordeste brasileiro, municípios no Norte de Minas Gerais e do Espírito Santo, onde o grau de conhecimento destes processos degradativos e sua extensão são ainda deficitários e necessitam de constantes atualizações. 

Quais são as principais características de uma área em processo de desertificação?

Uma área em processo de desertificação caracteriza-se por uma sucessão de eventos que apenas são perceptíveis ao longo do tempo. É a partir da repetição das etapas descritas abaixo, num ciclo vicioso, que se dá o processo:

  1. Chegada de pessoas e ocupação de uma certa área.
  2. As pessoas derrubam e queimam a vegetação. Usam o solo com atividades agrícolas ou pecuárias por três ou quatro gerações, com práticas agressivas, que o degradam e expõem à ação do vento e das chuvas.
  3. O Solo lastimado e violentado perde sua fertilidade. A água e o vento arrastam a terra, assoreando rios e açudes. Outra parte percorre distâncias mais longas e chega ao mar. Além disso, a superfície da área onde o solo foi levado pelo vento e chuva resseca e se torna impermeável. A cobertura vegetal que brotava dele perde a pujança e degrada-se, logo, a atmosfera é desidratada e se aquece, dificultando as precipitações. As reservas de água das profundidades do solo mínguam, as fontes se estancam e os rios tornam-se intermitentes.
  4. Com a redução da pujança do solo — de sua fertilidade, de sua capacidade produtiva — ocorre uma redução da renda familiar nas áreas afetadas.
  5. Com a redução da renda familiar nas áreas afetadas, ocorre uma deterioração das condições sociais das famílias. Isto acontece porque as famílias não conseguem mais converter os bens ecológicos do solo (agora desertificado) em bens econômicos para sobreviver.
  6. Por fim, as famílias fogem, migrando para grandes centros urbanos. As famílias, agora refugiadas ambientais, sem condições financeiras e instrução adequada para concorrer a um mercado trabalho altamente competitivo, se estabelecem em áreas periféricas e geralmente inadequadas para ocupação. Nestas áreas, por sua vez, dadas às intensas chuvas, ocorrem deslizamentos ou deslaves de terras, levando as famílias a viver na rua, sem moradia digna.

Nós dizemos que quando isso ocorre há uma decomposição social nas áreas afetadas, criando sociedades sem perspectivas, que coloca em permanente evidencia as desigualdades socioeconômicas e cria um estado de continua tensão social. Este é o nível mais elevado de degradação da terra, tornando a desertificação um problema ambiental, social, econômico, cultural e político. 

Quais as causas que a provocam?

Existem diferentes causas para a desertificação. Entretanto, a partir de uma visão ampliada, podemos dizer que as causas que provocam a desertificação estão relacionadas às atividades das pessoas, como as práticas agropecuárias extrativistas e ações antrópicas (ações realizadas por pessoas) adotadas para o uso dos recursos naturais da região semiárida, especialmente para o bioma Caatinga, que levam à exaustão dos solos e, finalmente, da vida humana.

Nas agriculturas e pecuárias tradicional e industrial, por exemplo, a crescente pressão de mercado faz com que o processo econômico assuma a imagem de um fluxo destinado à conversão de recursos em produtos orientados à venda e exportação. Esse enfoque implica abordar o meio natural “Solo” como uma fonte inesgotável de recursos, como mero suporte físico, realizado por estratégias destinadas a substituir os processos ecológicos que ocorrem na escala paisagem, de forma cíclica, pela importação maciça de energia sob a forma de insumos e de trabalho econômico.

Esta visão cria, no plano das ideias, as condições político-ideológicas de gestão econômica comandada pelas regras do mercado capitalista, gerando custos ambientais e sociais devastadores para todos nós enquanto sociedade.

Também vale destacar que fatores estruturais como a concentração de terra, renda, biodiversidade, água, meios de produção e alta densidade demográfica, contribuem de forma significativa para o agravamento da desertificação. 

Cisterna em Quixadá (Ceará) | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Que medidas podem ser adotadas para combater esse processo?

Combater a desertificação implica influenciar ou mudar o comportamento cultural, social, econômico e político da sociedade. A sociedade de consumo é uns dos mais tenebrosos inventos do atroz sistema econômico imposto ao mundo. Todo esforço para combater a desertificação é incompatível com o sistema econômico predominante.

Nessa perspectiva, precisamos mudar o enfoque de desenvolvimento humano, ou também chamado de “Viver Melhor”, pela ótica do “Bem Viver”. Isto se faz necessário porque o “Viver Melhor” pressupõe a ética do progresso ilimitado; a capacidade infinita do meio em reciclar matéria e absorver resíduos e nos incita a uma competição com os outros para criar mais e mais e subsequentemente “Viver Melhor”, entretanto, para que alguns “Vivam Melhor”, milhões e milhões têm que “Viver Mal”.

Faz-se necessário, transformar essa visão individualista do “Viver Melhor” pelo prisma de desenvolvimento sustentável ou chamado de “Bem Viver”, que necessariamente implica mudar a visão da vida para uma visão holística e integradora do ser humano, da ética da suficiência para a comunidade, não apenas para o indivíduo.

Para essa transição precisamos confrontar, com muita humildade, a verdadeira dimensão de nossa existência, num planeta indiferente à nossa presença. A coexistência de nosso poder destrutivo, com a fragilidade de nosso planeta é precária. A boa notícia é que ainda podemos tomar decisões hoje para continuar futurando sobre nossa existência, de um mundo mais humano e humanizante, a final, nada é mais importante que a preservação da vida.

Como é feito o monitoramento das áreas em processo de desertificação e onde esses processos estão mais avançados?

A desertificação implica mudança no tempo e, para ser caracterizada, demanda uma série temporal de dados. Isso é fundamental para a determinação de riscos, para a estimativa da progressão de desertificação e para a avaliação de ações preventivas.

Atualmente, embora com tantas evidências sobre a desertificação e mediante as tentativas de mensuração, sua organização em um sistema de indicadores quali-quantitativos ainda é muito incipiente e não fornece resultados consistentes para alimentar tomadas de decisão sobre esse grave processo evolutivo. A situação dos indicadores de Solos é a mais crítica — mais ainda do que aspectos ambientais, econômicos e sociais já foram considerados. Nenhum fenômeno de avaliação da degradação do Solo foi trabalhado em alguma escala de mensuração de fácil uso. As avaliações propostas são todas aplicáveis a pequenas áreas e não há uma maneira fácil de extrapolá-las a superfícies maiores, como a da região semiárida.

Segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), as áreas onde os processos estão mais avançados são os denominados Núcleos de Desertificação no Semiárido Brasileiro: Seridó, (RN/PB), Cariris Velhos (PB), Inhamuns (CE), Gilbués (PI), Sertão Central (PE), Sertão do São Francisco (BA).

Em geral, esses núcleos são áreas com grandes manchas desnudas, presença ou não de cobertura vegetal rasteira e sinais de erosão do solo. No entanto, existem outros locais com aparência de degradação semelhante, porém, ainda não reconhecidos como núcleos. As consequências se apresentam tanto em âmbito local, como regional, nacional e global, visto que resulta no empobrecimento da população local e declínio da qualidade ambiental nesses lugares, em processos migratórios intra-regionais, perda de biodiversidade, perda de território produtivo do país e na elevação do risco social em uma extensa área e, finalmente, nos aspectos negativos referentes ao clima do planeta, com a elevação da temperatura, interferências em processos biogeoquímicos, particularmente, na ciclagem da água e do carbono.

O processo de desertificação, dessa forma, deve ser encarado como um problema pan-geoespacial, articulado às demais áreas em desertificação do planeta. Com o advento e aceleração das mudanças climáticas, espera-se que estes processos se intensifiquem.

Para o monitoramento dessas áreas, órgãos de governo devem ter atenção especial, uma vez que se trata da perda de território nacional produtivo para as presentes e futuras gerações. Para tanto, é fundamental a identificação, experimentação e pactuação de indicadores que permitam o monitoramento socioambiental dessas áreas submetidas ao grave processo de degradação de sua qualidade ambiental, designada genericamente de “processo de desertificação”.

Existem tecnologias sociais que auxiliem no combate à desertificação?

Ao redor do mundo, famílias agricultoras experimentadoras em transição agroecológica vêm enfrentando as condições climáticas com inovação e resiliência. A partir do conhecimento compartilhado por famílias agricultoras, diversas tecnologias sociais foram inventadas e implementadas a partir de políticas públicas. As cisternas de placa são o exemplo mais exitoso. Hoje já são mais 1,3 milhão de cisternas construídas, garantindo acesso à água e segurança hídrica para mais de 5 milhões de brasileiras e brasileiros em 1.200 municípios.

A agricultura familiar agroecológica do Semiárido brasileiro vem promovendo processos de intensificação da produção baseados na valorização dos recursos locais, no emprego de tecnologias e práticas de manejo que diversificam os sistemas produtivos, com atividades que se complementam e permitem a formação de estoques de riquezas (água, forragem, alimentos e sementes) e uma maior circulação de nutrientes dentro do agroecossistema, estratégias estas interligadas com uma forte articulação social, organização e momentos sinérgicos de diálogo entre diversos sujeitos com interesses em jogo nas comunidades ou territórios.

Estas observações foram sistematizadas através de pesquisa-articulação-ação entre o Instituto Nacional do Semiárido (Insa) e a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), denominado Projeto ASA-INSA, que resgatou e mapeou sistemas agrícolas familiares camponeses em zonas áridas e semiáridas.

A pesquisa mostrou que a adaptação às mudanças climáticas e desertificação nos agroecossistemas da região semiárida passaram de um conceito a um fato, como consequência do conjunto de transformações estruturais, agroecológicas e sociais, em combinação com o fortalecimento de mecanismos de reciprocidade comunitária, originados pela implementação de políticas públicas contextualizadas de convivência com o semiárido.

A integração de Políticas Públicas ambientais, territoriais, patrimoniais e urbanísticas, é fundamental para que as ações possam se dar de forma encadeada, ao invés da dispersão de esforços observada em diversas áreas.

Por último, um desafio para a comunidade científica é definir marcos conceituais e metodológicos para decifrar os princípios e mecanismos que explicam a resiliência dos sistemas diversificados, de tal forma que estes possam ser transmitidos a outras famílias camponesas e os formuladores de políticas públicas possam responder de maneira oportuna e eficaz.


Aldrin Martin Perez-Marin é Nicaraguense de nascimento, mas escolheu o Nordeste brasileiro para morar e ser o território de suas pesquisas, que falam da agroecologia como ciência, movimento e prática na América Latina. Doutor em Energia Nuclear na Agricultura e Meio Ambiente (UFPE), tem sua trajetória acadêmica pautada na articulação de temáticas relacionadas à Desertificação e Agroecologia em terras Secas, Comunicação e Desenvolvimento Rural e Educação Ambiental contextualizada a partir de processos de Pesquisa Popular Participativas (3P). Hoje trabalha no Instituto Nacional do Semiárido (Insa/MCT), onde coordena o Núcleo de Desertificação e Agroecologia e é Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência do Solo do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal da Paraíba.