Acesso à Água
23.03.2016
Derramando o sangue da Terra
Paradigmas capitalistas permanecem colocando o acesso humano à agua em xeque

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Por Daniel Lamir - Asacom

A água potável está ameaçada no planeta | Foto: João Zinclar

O tema desta edição do Dia Mundial da Água é sugestivo para o cenário de crise mundial nos mercados financeiros. Ao definir “Água e Empregos”, a Organização das Nações Unidas (ONU) levanta dois temas angustiantes na nossa sociedade contemporânea. A nomenclatura “crise” abraçou tanto a distribuição de água como a disponibilidade de empregos no planeta.

A ilustração apresentada pela ONU para a celebração deste ano abre um campo de subjetividades. As questões da água e do emprego estão representadas por uma mangueira com um nó, a partir da temática “Investir na água, é investir em trabalho”. Uma livre interpretação da arte poderia indicar que o fluxo para os direitos à água e ao trabalho está sendo apertado pelo mesmo motivo. A lógica das grandes empresas.

 

Ilustração apresentada pela ONU para a celebração do Dia da Água

 

Na selvageria do capital, investir é sinônimo de explorar. O investimento desenfreado em metros cúbicos não significa necessariamente um compartilhamento equilibrado das cifras. Ou ainda, por exemplo, a empregabilidade da Samarco não vai fechar uma conta positiva diante dos efeitos negativos da tragédia anunciada, ocorrida no último dia 05 de novembro. Nesta perspectiva, é preciso repensar em um fluxo mais calibrado nos investimentos da água e dos empregos como direitos humanos. 

A situação do Rio São Francisco é historicamente emblemática. Com mais 70 por cento da transposição concluída, o embate entre o “implementar” ou o “suspender” a obra parece ter perdido o fôlego. De olho na ameaçada vida do Velho Chico e nas necessidades da população, o engenheiro agrônomo João Suassuna já destaca uma nova frente de embate político: “Do jeito que já está hoje, eu estou torcendo que este projeto seja entregue à sociedade. Por quê? Porque depois de serem aplicados R$ 8,2 bilhões de reais seria péssimo deixar o projeto virar um elefante branco. Agora, ao mesmo tempo, precisamos priorizar algumas coisas daqui para frente. A primeira coisa é se fazer um estudo. Os hidrólogos e os hidrogeólogos precisam cair em campo para se determinar a real necessidade da população. É preciso saber a quantidade de água necessária para se beber e cozinhar. E qual o rio ainda suporta. Essa água não pode ser utilizada para as empresas do setor de irrigação”.   

João Suassuna lembra a pesquisa do Atlas Nordeste, realizado pela Agência Nacional das Águas, como alternativa mais viável para o Velho Chico | Foto: João Zinclar

Além da preocupação com a transposição imprudente no curso de água, outras atividades permanecem perfurando o Velho Chico. A diminuição da quantidade de água retida no subsolo é uma delas. João Suassuna alerta que o São Francisco sofre ainda mais com a diminuição da água do aquífero de Urucuia, utilizado por empresas do ramo de soja, no oeste da Bahia. Ou seja, este é mais um exemplo em que a conta de investimentos empresariais não bate com a sustentabilidade da vida.

Na região da Chapada do Apodi, pelos Estados do Ceará e do Rio Grande do Norte, algumas empresas do setor agrícola são reconhecidas internacionalmente pelos produtos exportados. O que é menos popular é o processo de “importação” de água que elas realizam nos aquíferos da região. Em outras palavras, as empresas retiram mais água do que poderiam. A quantidade de água que sai para a produção é maior que a que entra por infiltração para os aquíferos. Ou seja, as águas subterrâneas estão sendo extintas.  

Além da água, a Chapada do Apodi é alvo de cobiça por conta do reconhecido solo do local – rico em nutrientes. Pelo lado cearense, o agronegócio é responsável pela devastação de grande parte da Agrobiodiversidade, além dos envenenamentos causado pelos agrotóxicos.

“Aqui do lado do Rio Grande de Norte, a cidade de Baraúna foi palco da instalação dessas empresas de produção de melão, mamão e melancia há cerca de dez anos. E o que ficou muito evidente é que essas empresas saíram de lá porque esgotaram a água e o solo do local. Os poços que essas empresas perfuraram não atendiam mais as demandas e expectativas deles. Do solo também retiraram muito, tanto que ele não aguentou mais. Hoje em Baraúnas é comum vermos enormes áreas descampadas deixadas por essas empresas”, ressalta Yure Paiva, coordenador da ASA pelo Estado do Rio Grande do Norte.

José Maria Filho, conhecido como Zé Maria de Tomé, foi brutalmente assassinado | Foto: Melquíades Júnior

O investimento na água da Chapada do Apodi gera lucros astronômicos para o agronegócio e destrói a agrobiodiversidade. Ao mesmo, a instalação das empresas geram mais empregos, mas também destrói vidas, através dos agrotóxicos. A afirmação está presente em pesquisas científicas, no debate dos movimentos sociais e nas vozes de moradores e moradoras do local. A injustiça está espalhada através de venenos e também de armas.  

“Na região, desde 2010, depois da morte do líder comunitário Zé Maria do Tomé existe um grande movimento chamado 21 de abril. Isso porque Zé Maria do Tomé foi assassinado com mais de vinte tiros por um dos donos de uma empresa do agronegócio. Zé Maria era um líder comunitário que denunciava a pulverização aérea, a contaminação ambiental e o adoecimento das pessoas na região. A partir de então movimentos como o MST, CSP Conlutas, Cáritas, FAFIDAM, Núcleo Tramas e moradores da comunidade lutam e denunciam as consequências nefastas à saúde e ao meio ambiente e para aquelas comunidades encurraladas pelo modelo do agronegócio”, afirma Ana Cristina Pontes, pesquisadora do Núcleo Tramas, da Universidade Federal do Ceará.


Mais Lutas sociais

No anseio da incidência política para mudar a situação, a sociedade civil permanece desenvolvendo estratégias para dialogar sobre a necessidade de consolidação prática da água como um direito. Pelo Semiárido, debates, palestras, campanhas e audiências fortaleceram os valores para o uso racional e sustentável da água. 

Ceará – O Fórum Cearense pela Vida no Semiárido realizou seminários nas oito microrregiões do Estado. As atividades seguiram a perspectiva da Campanha Água Nossa de Cada Dia, articulada pela Cáritas Ceará.

Sertão do São Francisco – com o tema “Crise hídrica: a insegurança continua”, organizações da sociedade civil e governamentais realizaram seminários, audiências e encontros, dentre outras atividades no nos municípios da região. O debate focou temas como a necessidade de gestão da água, a preservação e revitalização do Rio São Francisco e o Saneamento Básico.

“Nós passamos por um momento de chuva em que alguns reservatórios, pequenos e médios, da região transbordaram. Não é o caso do Lago Sobradinho, que está com trinta por cento da sua capacidade de armazenamento. Há uma certa frustração pela falta de abundância de água na região. Então reforçamos para dizer que a crise continua”, pontuou André Rocha, coordenador do eixo Clima e Água, do IRPAA, uma das organizações realizadoras da Semana da Água no Sertão do São Francisco.  

Piauí – No Dia Mundial da Água (22) o Fórum Piauiense pela Convivência com o Semiárido coletou assinaturas para a Campanha da Fraternidade 2016. Dentre as iniciativas, o Fórum está colaborando com a proteção de rios e praias.